25 setembro 2010

À pesca

No Blasfémias

Tolerámos 40 anos de Salazar. E não mudámos assim tanto

Quando Salazar foi eleito o “maior português de sempre” muitos encolheram os ombros: a votação tinha pouco significado e era tudo menos representativa. Mas quando, 40 anos passados sobre a morte do ditador, entramos em qualquer livraria e encontramos resmas de novidades que chegam a encabeçar as listas dos livros mais vendidos, interrogamo-nos: porquê este fascínio por Salazar?
Há uma resposta simples, talvez demasiado simples: a maioria dos portugueses já não viveu como adulto sob o seu regime e, face ao desencanto com os políticos de hoje, acaba a olhar ou para um Salazar mitológico ou para um desconhecido que lhe suscita curiosidade. Esta atracção também é devedora do registo maniqueísta que tem dominado o discurso público sobre o ditador, um registo que não autoriza nuances e alimenta estereótipos.
Mas há outra questão, mais profunda e inquietante: a de saber como foi possível Salazar manter-se no poder durante 40 anos.
Na mais importante obra saída nos últimos meses,
Salazar, Uma Biografia Política, Filipe Ribeiro de Menezes prefere contudo olhar para o porquê de Salazar se ter querido manter no poder. O historiador propõe duas razões: “A primeira, e mais importante, era uma crença em si próprio como agente providencial; a segunda era a percepção de que, sem ele no centro, o regime, assente numa aliança tecida de um delicado equilíbrio entre forças conservadoras, desabaria”. Contudo, se “durante a maior parte das quatro décadas [em que governou] a sua principal prioridade foi manter-se no poder”, essa vontade, mesmo que muito forte, mesmo que servida por uma enorme capacidade para gerir os equilíbrios no interior do regime, não explicam só por si a sua longevidade. Também não a explica o aparelho repressivo do regime. Não há dúvidas de que o Estado Novo era uma ditadura que utilizava sem estados de alma instrumentos como a censura, a discriminação e a perseguição dos opositores, a tortura nas prisões e a discricionariedade na aplicação de penas indefinidas, só que a contabilidade da repressão é, por comparação com outros regimes, modesta. Mais: Portugal nunca foi um Estado totalitário, apenas (o que não é pouco) autoritário. Salazar não se preocupava muito com a sua popularidade, mas o regime contou ora com o apoio tácito da população, ora com a sua indiferença, nunca teve de enfrentar uma hostilidade generalizada. Só a organização clandestina do PCP manteve uma espécie de guerra civil com a PIDE, a que a maioria de população foi quase sempre indiferente. Infelizmente o pouco que os portugueses se mobilizaram para terem as suas liberdades de volta é um dado histórico de que não nos podemos orgulhar.

E aqui voltamos ao ponto central: como foi isso possível?
A resposta mais comum, e nem por isso falsa, é que a prolongada indiferença face aos métodos da ditadura foi fruto da nossa condição de país pobre, rural e semi-analfabeto. Um país sem classe média, ou onde a classe média é muito pequena, é por norma um país menos exigente politicamente, e Portugal não escapou à regra: quando, a partir do final dos anos 50, a economia acelerou, as cidades se encheram e começou a aumentar o número de estudantes nos cursos médios e universitários, de imediato aumentaram as dificuldades do regime. Não por acaso Salazar preferia o Portugal rural, não por acaso desencorajou ou desautorizou os muitos ministros “desenvolvimentistas” com quem trabalhou, não por acaso vivia como um recluso numa residência oficial onde se criavam galinhas para consumo doméstico.
Contudo esta condição de “país pobre” não tinha de ser uma fatalidade – era apenas a fatalidade que Salazar herdara após quase um século de governos liberais ou abertamente jacobinos. Durante todo o século XIX e no início do século XX Portugal divergiu da Europa e do mundo desenvolvido, só conseguindo começar a reaproximar-se a partir da estabilização financeira promovida por Salazar. É duro, mas é verdade pois significa que mesmo oferecendo ritmos de crescimento pouco ambiciosos, o salazarismo proporcionou a Portugal mais do que lhe tinham oferecido os regimes anteriores. Não surpreende por isso que muitos tivessem aceitado a falta de liberdade – para mais apresentada e vista como necessária a uma “paz interna” que contrastava com a turbulência, instabilidade e ambiente de guerra civil larvar que marcara a I República.

A debilidade de uma cultura de liberdade, se tinha raízes sociais e históricas, era também cultural e política. Primeiro, porque Salazar não mentia quando disse, em 1945, que “antes de nós e por dezenas de anos – reconhecemo-lo com tristeza –, as ditaduras foram a forma corrente da vida política e vimo-las alternar-se ou suceder-se quase ininterruptamente, sob formas diversas”. Na verdade, como assinalou o historiador Rui Ramos, “nunca, antes de 1926, as eleições, envolvendo apenas eleitorados restritos e tutelados, haviam sido consideradas genuínas ou livres”. Houvera partidos na Monarquia Constitucional, tal como houvera partidos na I República, mas ou as eleições eram tuteladas, ou o colégio eleitoral artificialmente restrito, ou o ambiente político marcado pela coacção. Os portugueses não tinham perdido com o advento de Salazar um regime aberto e plural como o que hoje temos, pois apenas tinham conhecido oligarquias dilaceradas por querelas internas.
Depois, porque nunca se consolidou em Portugal uma elite liberal. Como explicou Vasco Pulido Valente, o fim do Antigo Regime e o advento “liberalismo” não foram produtos de um sobressalto interno, antes subprodutos das Invasões Francesas: “A invasão e a guerra, por assim dizer, ‘provocaram’ o ‘liberalismo’ em Portugal. Um produto exógeno, que não podia ser aceite pacificamente”, notou o historiador. Mas não só: o “liberalismo”, “por causa da sua intrínseca fraqueza e do seu isolamento na sociedade portuguesa, viveu até muito tarde sob a tutela do exército” e “continuou também as tradições do ‘antigo regime’”, como um Estado “centralizado, despótico e intrusivo” que sustentava “com dinheiro público uma classe média burocrática e ‘parasitária’” e intervinha de forma constante na economia. Não mudámos assim tanto.
Há ainda a sublinhar a hegemonia do pensamento “francês” entre as elites – uma hegemonia que justifica o carácter profundamente jacobino e dirigista do pensamento republicano, que se prolonga na influência de Maurras no pensamento autoritário de Salazar e que só recentemente começou a perder, em alguns meios, para a tradição anglo-saxónica da liberdade.

Salazar, para se manter no poder, não teve mais do que interpretar esta maneira de ser do povo português. Ao contrário dos seus antecessores, nem sequer promoveu uma revolução, não teve de substituir as hierarquias nem de gerar novas obediências: teve apenas de promover o que podemos designar como uma “acalmação”, baixando a “febre política” para permitir aos portugueses “viver habitualmente”. Apor isso até aos anos 60, quando as coisas começaram a mudar, os poucos sobressaltos sentidos pelo regime – como aquando do comício da Fonte da Moura, no Porto, na campanha de Norton de Matos, ou sobretudo durante a campanha de Humberto Delgado – nunca foram suficientes para que se sentisse a aproximação do fim do regime.
Não deve pois surpreender-nos que a mesma mistura de apatia, dependência do Estado e iliberalismo continuem a marcar a paisagem política portuguesa. Facilmente é possível encontrarmos quem feche os olhos ao autoritarismo ou ao desrespeito do Estado de Direito desde que lhe falem em “desenvolvimento”. Tal como é fácil assustar os portugueses com a mínima perspectiva de abalo da
babysitter estatal. Ou tal como é popular, tanto à esquerda como à direita, criticar qualquer actividade que dê lucro e fugir de tudo o que implique riscos.
Quarenta anos depois da morte de Salazar o país que o aturou pacatamente mudou muito – mas sobretudo à superfície. Salazar já pertence à história, mas os defeitos portugueses que autorizaram o salazarismo continuam a apoquentar-nos. Todos os dias.

Público, 24 de Setembro de 2010

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