20 fevereiro 2011

Para terminar, por hoje...

... de novo África vivida por Nicolau Saião:


ÁFRICA (GUINÉ), FEVEREIRO DE 70


Entre mim e as janelas há o rio e as árvores

e milhões de anos feitos para a gazela e a marabunta.

Dionísio teria percorrido a savana e a montanha

quando ainda não havia rastos de camião

nem o mar sepultava pensamentos e memórias

entre um olhar e um silêncio.

Serena era a madrugada, subitamente despertando

um vôo de coruja sobre os ombros de quem velava

- pastor e aguadeiro -

homem que na terra colocava a semente do tempo

ou do milho fremente para os sonhos e os minutos.

Algures, junto a uma parede devastada

onde a cal cristalizara a inocência e a perfídia

as abelhas eram a equivalência perfeita

do universo gerando a carne negra e branca

que dos livros guardara a misericórdia e o temor

de anos e anos a vir.

Há um grande e perpétuo rumor que faz pensar

em Orion e no Cruzeiro do Sul

mesmo quando o sol ainda risca a figura

incontusa dos sete pontos cardeais.

Qual o fulgor

que viaja entre oriente e ocidente

- os campos do mamute e da zebra primaveril -

mesmo quando a época das gramíneas refloresce

entre lua e penumbra?

Na terra

marco os dedos e os vestígios

de avós e bisavós

mas o contorno das palavras que escrevo e que despertam

as sombras do passado e do futuro

hei-de lembrá-las sempre

impolutas sobre o rio, sobre as casas, sobre os homens

que vi e que inventei.

in “Poemas perdidos”, com fotos de Almeida e Sousa

QUARTA ENTRADA

Avançavam cautelosamente à roda da vinha. Por precaução retirou e depois voltou a meter o carregador da automática. O tremor passara-lhe. Lembrou-se de quando brincava aos índios e cóbois na courela da Quinta Ferreira, antes do bosquezinho de castanheiros e um pouco para além da eira e da saibreira como um deserto em miniatura.

A rajada apanhou o companheiro da frente à altura dos rins e fê-lo rodopiar. Ao estender-se no chão, estranhamente calmo e fazendo pontaria como se estivesse na carreira de tiro, viu os olhos do outro muito abertos e fixos na cara suada.

Olhos esverdeados como uvas ainda não plenamente amadurecidas.

in “As estações da vinha”

LEVANTAMENTO DE RANCHO

O meu sargento desculpe mas ali não havia sonhos

Nem sequer daquele arroz que a prima maria fazia

Doce como os sonhos o meu sargento desculpe

Mas é tão estúpido tão escalabitano tão

A norte de bafatá ou mesmo

Castelo branco o meu sargento é um nabo

Sonhos de ovos em castelo misturados na farinha

O meu coronel desculpe mas tive de o abater

O gajo não entendia que os sonhos eram os outros

Eu não ia gastar na tropa recordações de noites várias

E já agora também lhe digo que na bolanha entre as árvores

Há um ar em silêncio extremamente melancólico

O meu capitão desculpe mas não chamei a amargura

De quando conheci a domingas uma vez encontrei-a

Já havia muitos meses que me lavava a roupa

Junto ao mercado do Pixiguiti chorava

Era sofrida como uma mulher

Doce e tão calada como um objecto partido

O meu capitão desculpe mas tive que o abater

É uma coisa que me chateia entrarem-me nos afectos

O que é que você sua besta sabia da ternura em comissão

De serviço o senhor que olhava de alto os taratas e os mancarras

O meu major desculpe mas era chegada a hora

Tantos anos depois ficaram todos em fila

A vingança é o que mais mora numa cabeça de soldado

Pensa-se nisso sempre quando se passa à peluda

De modo que foi assim fiz levantamento de memórias

E o melhor de tudo foi que já não me podiam tocar

Eram nabos frios como o esparguete o arroz sensaborão

Ficaram todos em fila pois então

Mesmo que em sonhos e agora estes não são

De ovos e farinha como almejava nesse tempo

Quando aguardava sem chegar uma encomenda familiar

Os olhos antigos tão fundos como o pego do rio Geba

E já agora que estamos com a mão na outra massa

Que é como quem diz com a pata na G3

O meu general vá à fava palavra de civil tão sem galões

O meu general é um nabo como na caserna se dizia.

in “O armário de Midas”

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