25 abril 2010

Da realidade do poder (3)


Foi a 25 de Abril de há 36 anos que se deu o 25 Abril.
E isso fez-me lembrar, a propósito do tema que tenho vindo a abordar aos poucos, de dois casos que, já agora, acrescentarei aos anteriores.
Em primeiro lugar, recordo-me de uma conversa telefónica que tive com uma figura que foi e se mantém como um ícone maior do chamado “espírito de Abril”, seja lá o que for que se queira significar com isso. Já o tinha encontrado a seguir ao 1º de Maio e voltei a falar com ele cerca de três anos depois, desta vez, como disse, ao telefone, enquanto representante de uma instituição. Falei, melhor, falou durante cerca de uma hora. Falou do desengano quanto ao espírito daqueles em torno de cujas potenciais virtudes construíra a sua visão do mundo e desenvolvera a correspondente acção. Falou da sua indignação perante o persistente e arreigado rasteirismo de horizontes, do egoísmo arrogante e estreito. Numa explosão de amargura e nojo proporcional à sua dimensão e empenhamento. Ouvi-o e concordei. Afinal, também eu me ia apercebendo do mesmo.
Se, a mim, um estranho, me disse tudo isto, o que não terá dito aos que com ele conviviam? E a tantos outros, para lá deles? A imagem transmitida pela comunicação social e pelos arautos da área política em que se situava, porém, não dava conta do que lhe ia passando na alma e no ânimo, bem pelo contrário. A não ser tempos mais tarde, quando, sarcástico e demolidor, disse algo em público que irritou, ao pôr em causa, a hipocrisia medíocre que o rodeava. Irritou, mas, é claro, apenas por um bocadinho e sem que alguém caísse em fazer demasiado alarido disso - que os enfants térribles, afinal, até dão jeito, para fingir que alguma coisa se passa e que é tudo gente séria. No fim, como é costume, as suas palavras reverteram, como seria de esperar, no reforço da imagem que servia - e continua a servir - a uns quantos.
O que seria de esperar que eu ouvisse, pelo meu lado, se reproduzisse essa conversa de há 33 anos? Quantas acusações de mentiroso, difamador e denegridor da sua figura não me seriam feitas? E de quanto disso não se aproveitariam os mesmos cuja menoridade ele abominava, “denunciando” mais um “ataque aos verdadeiros valores” e da prova que esse mesmo ataque, em si, constituiria da “justeza” das suas posições e da sua (deles) “luta”? Pois não são eles os únicos que, verdadeiramente, “fazem e farão a História”?
Em segundo lugar, lembrei-me de uma história que o meu pai me contou sobre um seu amigo e nosso vizinho, cujo cunhado fazia parte de um grupo de portugueses, misteriosamente desaparecidos em África durante a guerra nas “províncias ultramarinas”. Apesar dos esforços das famílias para serem informados da natureza do que ocorrera bem com da sorte dos desaparecidos ou, pelo menos, do seu possível paradeiro, nada conseguiram obter quer por parte das autoridades do regime quer pela das instâncias privadas a que recorreram.
Não me recordo exactamente de quando, mas, salvo erro, aproximadamente pela mesma altura em que teve lugar a conversa a que me referi, um jornalista de grande destaque, antes e depois do 25 de Abril, alguém que teve uma enorme importância para mim e para a minha geração, mas sobretudo no período anterior a essa data, pelo espírito crítico com que estruturava o que escrevia, publicou um conjunto de artigos com carácter de investigação sobre esse caso, ocorrido anos atrás. Artigos em que o cunhado do nosso vizinho era apresentado como cérebro organizador e protagonista maior do que teria ocorrido.
Entre espantado (o cunhado não seria especialmente dotado para comandar o que quer que fosse) e esperançoso, o amigo do meu pai telefonou para o jornal, pediu para falar com o jornalista, Identificou-se e pediu-lhe que o recebesse, no sentido de obter maiores informações e esclarecimentos sobre tudo aquilo que sucedera, ao seu familiar e aos restantes. O jornalista convidou-o então a ter uma conversa em sua casa, de preferência à redacção, o que, como seria de esperar, mais deixou na expectativa e na ansiedade o nosso vizinho. Indignação, no entanto, foi o que apenas trouxe do que ouviu. É que o jornalista - cujas posições políticas, com o 25 de Abril, se haviam tornado rapidamente para além de firmes - lhe confessou que a investigação que realizara ia no sentido de aproveitar umas quantas pistas que lhe pareciam justificativas de muitas das suas convicções e perspectivas e que quanto ao cunhado do vizinho, bem… tinha-o posto naquele papel para «compor um pouco a história». Apresentava as maiores desculpas pelo que fizera, mas pedia compreensão quanto ao sucedido e que, por favor, não transformasse o assunto em motivo para polémica pública ou processos judiciais. Julgo recordar-me que lhe prometeu refazer a imagem do cunhado e suponho (suponho!) que lhe tenha dito também, dado o silêncio mantidos posteriormente pelo amigo do meu pai, que utilizaria a sua posição e conhecimentos para lhe ir dando quaisquer novidades que viessem a surgir.
O cunhado do nosso vizinho e os seus companheiros nunca mais foram vistos. O vizinho morreu. Seguiu-se-lhe o meu pai. O jornalista foi o último, sem que, tanto quanto eu saiba, haja visto o seu prestígio beliscado e posta em dúvida, sob qualquer aspecto, a seriedade e o rigor a que, como toda a gente o sabia, habituara os seus leitores em matéria de investigação.
E a História viu-se mais composta.
(continua)

1 comentário:

Anónimo disse...

Este caso que Joaquim Simões conta é significativo. Mas, ainda mais significativo deste tempo de agora e aqui, que revela bem o tempo de medo e de iniquidade continuada em que se vive neste momento, é o detalhe de Simões se impedir de dizer abertamente o nome do jornalista.Percebe-se por uma questão de prudencia e de sensatez.
Compreendo-o. Como eu o compreendo!
Este é o tempo em que se tem de novo de falar por meias palavras, de se evitar dizer a verdade nua e crua, de frente e sem medo.
É o tempo em que um premier se apresenta em público com um rosto risonho, num misto de arrogancia e desfaçatez, enquanto o cidadão sofre e ele e os seus aparatchikis vão destruindo o que resta da democracia e do país. E que, com desfaçatez e arrogancia, chamam a quem os contesta maus portugueses,tal como os fascistas vermelhos anteriores nos chamavam reaccionários por nos opormos a eles justificadamente.
Este é um país onde um ministro da Justiça diz em frente das câmaras de tv que há alguns criminosos que merecem mais protecção do que as vítimas, em que o mesmo senhor, falando dum episódico momento em que foi contestatário e relevante, não percebe, perdida toda a perspectiva, que se tornou ele agora o rosto execrado de quem nos oprime, que se transformou, como na estória de Richard Matheson, na lenda negra e na odiosa figura, por consentir com o partidão em que milita que esta nação se tenha tornado um lugar de boys, de oportunistas e de ávidos, que desprezam claramente o povo sobre o qual tripudiam.
Também eu, como muitos, andei de armas na mão no 25 de Abril, e mesmo antes e, depois, quando fez falta enfrentar a videirice.
Não me envergonho de o ter feito, envergonho-me é do país que eles, aproveitando-se da nossa boa-fé, estabeleceram e temos agora: torpe, a caminho do descalabro, repleto de vigaristas políticos e de criaturas políticas repelentes.
De boys e de girls. De monstrinhos lusitanos.
Faz falta aqui, sem dúvida, decencia, altivez democrática e uma boa meia-dúzia de Salgueiros Maias.
De governantes de mau calibre é que não precisamos de certeza.

Hélio Correia Macedo