... deixo aqui, entretanto, um pequeno texto de Chesterton, numa tradução do meu caro Nicolau Saião.
O que achei nas algibeiras
Uma única vez, no decorrer da minha vida, fui ao bolso de um fulano e, de certezinha por distracção, acontece que esse bolso era o meu…
Com propriedade o acto pode descrever-se dessa forma, no mínimo, porque ao tirar coisas das algibeiras fui sentindo as emoções do gatuno: a total ignorância sobre o que ia achar e uma curiosa excitação pelo que ia encontrando…
Estava bem fechadinho num autocarro de terceira e a viagem ia ser longa. Caía a tarde e, no exterior, a terra e o céu eram tão monótonos como uma tela na qual o pincel molhado da chuva houvesse imprimido uma descolorida melancolia. Não levava comigo nem jornais nem livros. Nas paredes do veículo não havia nenhum cartaz de publicidade sobre o qual pudesse efectuar um estudo apurado – isto porque qualquer acervo de palavras impressas é suficiente para me sugerir as infindáveis complexidades do humano engenho mental. Assim, por exemplo, quando me encontro frente às palavras “Sabão Sol” fico capaz de esgotar todos os aspectos do culto solar, de Apolo e da poesia do verão, antes de entrar no assunto propriamente dito e menos transcendente do sabão…
Mas no compartimento que ocupava não se viam nem imagens nem palavras em que pudesse deter o olhar, nada havia para além da inexpressiva madeira, no interior e, lá fora, a paisagem coberta de humidade
Ora, sempre me tenho negado com energia a admitir que haja coisas que não possuam qualquer interesse. Assim sendo, pus-me a olhar os encaixes das tábuas das paredes e dos assentos, meditando profundamente no empolgante tema que é a madeira. E no exacto momento em que começava a entender porque é que Jesus Cristo fora carpinteiro e não pedreiro ou mesmo padeiro, vieram-me de repente à ideia as minhas algibeiras. Sem disso ter consciência, carregava comigo um tesouro desconhecido! Aquelas ninharias que sempre se trazem distribuídas por todo o corpo, por aqui e por ali. E comecei a tirar coisas dos bolsos.
O que primeiro de lá saiu foram uns quantos bilhetes de eléctrico da carreira de Battersea, os quais me deram de imediato o material impresso de que estava a precisar: no verso de cada um deles lia-se um curto mas incisivo ensaio científico sobre certas pílulas medicinais. Dada a minha modesta condição económica desse tempo, os ditos bilhetes de eléctrico podiam considerar-se como uma minúscula mas selecta biblioteca científica. Continuasse eu a viajar daquela forma mais alguns meses – o que, na época, era muito de admitir – e estaria dentro em breve mergulhado com empenho numa polémica sobre os defeitos e as virtudes das pílulas, armando réplicas e tréplicas ora contra ora a favor, baseado nos dados que os bilhetes me facultavam.
Depois tirei do bolso um canivete. Um canivete, digamo-lo desde já, é objecto que só por si faz jus a um volume considerável de meditações morais. Pois a faca é um elemento típico de uma das primaciais origens práticas em que assenta, como sobre curtos e grossos pilares, a civilização humana. Os metais, o mistério daquilo a que chamamos ferro e aço, levaram-me a uma espécie de sonho arrebatado. Mediante a fantasia penetrei no âmago de bosques húmidos e escuros onde o homem primitivo topou, entre outras pedras, com esse estranho calhau. Vi-me no meio de uma escaramuça violenta e vaga, na qual os machados e os facalhões de sílex se quebravam, se estilhaçavam contra algo de novo que reluzia e que um dos furiosos combatentes empunhava. Escutei todos os martelos malhando em todas as bigornas do mundo; vi todas as espadas das guerras feudais e todas as engrenagens da batalha industrial.
Porque a faca é apenas uma espada curta; e o canivete é uma espada oculta. Abri-o – e pus-me a contemplar essa língua luzente e temível a que se dá o nome de lâmina; e concebi que talvez ela fosse o símbolo da mais antiga necessidade do homem…Mas no momento seguinte percebi que me enganara., pois o objecto que logo após me saiu do bolso era uma caixa de fósforos. Visionei então o fogo, que ainda é mais poderoso do que o aço; a chama, essa antiga coisa feminina e feroz, que todos amamos mas em que não ousamos tocar…
Veio a seguir um bocado de giz; e vi nele a arte toda, os murais de todos os tempos e de todos os lugares. Depois extraí do bolso uma moedinha de parco valor; e nela vi não só a efígie do nosso próprio imperador mas também a soma de todos os governos e da ordem, desde que o mundo é mundo.
Mas falta-me espaço para arrolar agora a lista completa de objectos que, num longo e esplêndido corrupio de símbolos poéticos, continuou a escorrer-me das algibeiras.
Uma coisa, contudo, posso assegurar-vos: nelas não consegui achar o bilhete do autocarro…
Uma única vez, no decorrer da minha vida, fui ao bolso de um fulano e, de certezinha por distracção, acontece que esse bolso era o meu…
Com propriedade o acto pode descrever-se dessa forma, no mínimo, porque ao tirar coisas das algibeiras fui sentindo as emoções do gatuno: a total ignorância sobre o que ia achar e uma curiosa excitação pelo que ia encontrando…
Estava bem fechadinho num autocarro de terceira e a viagem ia ser longa. Caía a tarde e, no exterior, a terra e o céu eram tão monótonos como uma tela na qual o pincel molhado da chuva houvesse imprimido uma descolorida melancolia. Não levava comigo nem jornais nem livros. Nas paredes do veículo não havia nenhum cartaz de publicidade sobre o qual pudesse efectuar um estudo apurado – isto porque qualquer acervo de palavras impressas é suficiente para me sugerir as infindáveis complexidades do humano engenho mental. Assim, por exemplo, quando me encontro frente às palavras “Sabão Sol” fico capaz de esgotar todos os aspectos do culto solar, de Apolo e da poesia do verão, antes de entrar no assunto propriamente dito e menos transcendente do sabão…
Mas no compartimento que ocupava não se viam nem imagens nem palavras em que pudesse deter o olhar, nada havia para além da inexpressiva madeira, no interior e, lá fora, a paisagem coberta de humidade
Ora, sempre me tenho negado com energia a admitir que haja coisas que não possuam qualquer interesse. Assim sendo, pus-me a olhar os encaixes das tábuas das paredes e dos assentos, meditando profundamente no empolgante tema que é a madeira. E no exacto momento em que começava a entender porque é que Jesus Cristo fora carpinteiro e não pedreiro ou mesmo padeiro, vieram-me de repente à ideia as minhas algibeiras. Sem disso ter consciência, carregava comigo um tesouro desconhecido! Aquelas ninharias que sempre se trazem distribuídas por todo o corpo, por aqui e por ali. E comecei a tirar coisas dos bolsos.
O que primeiro de lá saiu foram uns quantos bilhetes de eléctrico da carreira de Battersea, os quais me deram de imediato o material impresso de que estava a precisar: no verso de cada um deles lia-se um curto mas incisivo ensaio científico sobre certas pílulas medicinais. Dada a minha modesta condição económica desse tempo, os ditos bilhetes de eléctrico podiam considerar-se como uma minúscula mas selecta biblioteca científica. Continuasse eu a viajar daquela forma mais alguns meses – o que, na época, era muito de admitir – e estaria dentro em breve mergulhado com empenho numa polémica sobre os defeitos e as virtudes das pílulas, armando réplicas e tréplicas ora contra ora a favor, baseado nos dados que os bilhetes me facultavam.
Depois tirei do bolso um canivete. Um canivete, digamo-lo desde já, é objecto que só por si faz jus a um volume considerável de meditações morais. Pois a faca é um elemento típico de uma das primaciais origens práticas em que assenta, como sobre curtos e grossos pilares, a civilização humana. Os metais, o mistério daquilo a que chamamos ferro e aço, levaram-me a uma espécie de sonho arrebatado. Mediante a fantasia penetrei no âmago de bosques húmidos e escuros onde o homem primitivo topou, entre outras pedras, com esse estranho calhau. Vi-me no meio de uma escaramuça violenta e vaga, na qual os machados e os facalhões de sílex se quebravam, se estilhaçavam contra algo de novo que reluzia e que um dos furiosos combatentes empunhava. Escutei todos os martelos malhando em todas as bigornas do mundo; vi todas as espadas das guerras feudais e todas as engrenagens da batalha industrial.
Porque a faca é apenas uma espada curta; e o canivete é uma espada oculta. Abri-o – e pus-me a contemplar essa língua luzente e temível a que se dá o nome de lâmina; e concebi que talvez ela fosse o símbolo da mais antiga necessidade do homem…Mas no momento seguinte percebi que me enganara., pois o objecto que logo após me saiu do bolso era uma caixa de fósforos. Visionei então o fogo, que ainda é mais poderoso do que o aço; a chama, essa antiga coisa feminina e feroz, que todos amamos mas em que não ousamos tocar…
Veio a seguir um bocado de giz; e vi nele a arte toda, os murais de todos os tempos e de todos os lugares. Depois extraí do bolso uma moedinha de parco valor; e nela vi não só a efígie do nosso próprio imperador mas também a soma de todos os governos e da ordem, desde que o mundo é mundo.
Mas falta-me espaço para arrolar agora a lista completa de objectos que, num longo e esplêndido corrupio de símbolos poéticos, continuou a escorrer-me das algibeiras.
Uma coisa, contudo, posso assegurar-vos: nelas não consegui achar o bilhete do autocarro…
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