No Blasfémias
Tolerámos 40 anos de Salazar. E não mudámos assim tanto
Quando Salazar foi eleito o “maior português de sempre” muitos encolheram os ombros: a votação tinha pouco significado e era tudo menos representativa. Mas quando, 40 anos passados sobre a morte do ditador, entramos em qualquer livraria e encontramos resmas de novidades que chegam a encabeçar as listas dos livros mais vendidos, interrogamo-nos: porquê este fascínio por Salazar?
Há uma resposta simples, talvez demasiado simples: a maioria dos portugueses já não viveu como adulto sob o seu regime e, face ao desencanto com os políticos de hoje, acaba a olhar ou para um Salazar mitológico ou para um desconhecido que lhe suscita curiosidade. Esta atracção também é devedora do registo maniqueísta que tem dominado o discurso público sobre o ditador, um registo que não autoriza nuances e alimenta estereótipos.
Mas há outra questão, mais profunda e inquietante: a de saber como foi possível Salazar manter-se no poder durante 40 anos.
Na mais importante obra saída nos últimos meses, Salazar, Uma Biografia Política, Filipe Ribeiro de Menezes prefere contudo olhar para o porquê de Salazar se ter querido manter no poder. O historiador propõe duas razões: “A primeira, e mais importante, era uma crença em si próprio como agente providencial; a segunda era a percepção de que, sem ele no centro, o regime, assente numa aliança tecida de um delicado equilíbrio entre forças conservadoras, desabaria”. Contudo, se “durante a maior parte das quatro décadas [em que governou] a sua principal prioridade foi manter-se no poder”, essa vontade, mesmo que muito forte, mesmo que servida por uma enorme capacidade para gerir os equilíbrios no interior do regime, não explicam só por si a sua longevidade. Também não a explica o aparelho repressivo do regime. Não há dúvidas de que o Estado Novo era uma ditadura que utilizava sem estados de alma instrumentos como a censura, a discriminação e a perseguição dos opositores, a tortura nas prisões e a discricionariedade na aplicação de penas indefinidas, só que a contabilidade da repressão é, por comparação com outros regimes, modesta. Mais: Portugal nunca foi um Estado totalitário, apenas (o que não é pouco) autoritário. Salazar não se preocupava muito com a sua popularidade, mas o regime contou ora com o apoio tácito da população, ora com a sua indiferença, nunca teve de enfrentar uma hostilidade generalizada. Só a organização clandestina do PCP manteve uma espécie de guerra civil com a PIDE, a que a maioria de população foi quase sempre indiferente. Infelizmente o pouco que os portugueses se mobilizaram para terem as suas liberdades de volta é um dado histórico de que não nos podemos orgulhar.
Salazar, para se manter no poder, não teve mais do que interpretar esta maneira de ser do povo português. Ao contrário dos seus antecessores, nem sequer promoveu uma revolução, não teve de substituir as hierarquias nem de gerar novas obediências: teve apenas de promover o que podemos designar como uma “acalmação”, baixando a “febre política” para permitir aos portugueses “viver habitualmente”. Apor isso até aos anos 60, quando as coisas começaram a mudar, os poucos sobressaltos sentidos pelo regime – como aquando do comício da Fonte da Moura, no Porto, na campanha de Norton de Matos, ou sobretudo durante a campanha de Humberto Delgado – nunca foram suficientes para que se sentisse a aproximação do fim do regime.
Não deve pois surpreender-nos que a mesma mistura de apatia, dependência do Estado e iliberalismo continuem a marcar a paisagem política portuguesa. Facilmente é possível encontrarmos quem feche os olhos ao autoritarismo ou ao desrespeito do Estado de Direito desde que lhe falem em “desenvolvimento”. Tal como é fácil assustar os portugueses com a mínima perspectiva de abalo da babysitter estatal. Ou tal como é popular, tanto à esquerda como à direita, criticar qualquer actividade que dê lucro e fugir de tudo o que implique riscos.
Quarenta anos depois da morte de Salazar o país que o aturou pacatamente mudou muito – mas sobretudo à superfície. Salazar já pertence à história, mas os defeitos portugueses que autorizaram o salazarismo continuam a apoquentar-nos. Todos os dias.
Sem comentários:
Enviar um comentário