07 junho 2008

O trabalho não me deixa...

William Blake, Hecaté

... mandar os meus bitaites. Por isso, deixo aqui dois textos que resumem parte do meu ponto de vista sobre o tema.
Até já.
As tradições reclamam um direito ao renascimento e esse direito é caro à consciência europeia, na medida em que esta reconhece o antigo como fonte de modernidade. Os povos descolonizados souberam provocar o renascimento da sua tradição voltando a encontrar o seu ponto cardeal, o seu Oriente (“orientar” significa, etimologicamente, implantar um edifício na direcção do oriente). Foi deste modo que apareceram os conceitos de negritude, arabismo, judaísmo, islamismo, etc., que, recordo, exemplificam paradoxalmente a própria filosofia das Luzes, no seu princípio do direito a governar-se a si próprio. Há, portanto, uma ambivalência neste radicalismo, uma vez que ele é simultaneamente identificação ao outro e distanciação em relação à Europa.
O despertar das tradições desnaturou-se, porque os direitos da tradição são muitas vezes utilizados, nos países descolonizados, não para fins de igualdade e liberdade, mas de submissão, de obediência e de medo. Esquecemo-nos, com demasiada frequência, de dizer que o islamismo armado fez muito mais vítimas nos próprios países muçulmanos do que nos cristãos (contam-se mais de 100.000 mortos na Argélia). Conclui-se que o pertencer a uma mesma cultura ou a uma mesma religião não é uma garantia de tolerância ou de felicidade política. Porque não é a ligação cultural que faz a ligação política, mas a ligação civil.
Outro aspecto que torna desumanos os direitos culturais é o facto de a condição cultural árabe, judaica, muçulmana, corsa, basca sérvia, ocidental, etc., os colocarem acima da condição humana. É aqui que a ilusão cultural provoca os maiores estragos: quando acreditamos que somos humanos apenas por termos uma cultura e não por natureza, sempre que encerramos a dignidade do homem na sua origem étnica, religiosa, nacional ou imperial. Deixamos então de entender a expressão “cultura” como um aperfeiçoamento livre de nós próprios, mas como uma entrega de consciência a um princípio determinista. (…)
Em terceiro lugar, os direitos da tradição pecam precisamente por julgarem combater a modernidade, juntando-se àquilo que ela tem de pior, a difusão maciça de novas idolatrias que a técnica torna prodigiosas. O fanatismo é um valor seguro para os media, de que é sabido usurparem os direitos do pensamento. Se definirmos, acompanhando Condorcet, o obscurantismo como a “tirania que a astúcia exerce sobre a ignorância”, existe um obscurantismo próprio da comunicação que se constitui em dirigente do espírito humano. A comunicação, embora sendo o primeiro utensílio de informação do mundo, é o último em termos de inteligibilidade. Explora-se a ilusão da expressão, mas não a faculdade de nos compreendermos. A comunicação aumenta o ininteligível, quando a primeira missão de uma cultura suportável é a de tornar o mundo inteligível, ou seja, para retomarmos o título de um opúsculo de Kant, tornar o homem capaz de “se orientar no pensamento”. A desorientação, funcionando na comunicação, traduz-se num reforço cultural reduzido às paixões da opinião. O objecto religioso torna-se, indiferentemente, em objecto publicitário e o objecto publicitário em objecto religioso. A intolerância é sempre mais bem servida pela arma que a deveria vencer.


Helé Beji, "A Cultura do Inumano", in J. Bindé, Para Onde Vão os Valores, 2004

Envergonhados pelo domínio durante tempo exercido sobre os povos do Terceiro Mundo, juramos não mais recomeçar e - resolução inaugural - decidimos poupar-lhes os rigores da liberdade à europeia. Com medo de exercer violência sobre os imigrados, confundimo-los com a libré que a História lhes talhou. Para lhes permitir viver como lhes agrada, recusamo-nos a protegê-los contra os delitos ou os abusos eventuais da tradição de onde emanam. Com o fim de atenuar a brutalidade do desenraizamento, voltamos a colocá-los, de pés e mãos atados, à disposição da sua comunidade e conseguimos assim limitar aos homens do Ocidente a esfera de aplicação dos direitos do homem, embora acreditando alargar esses direitos, ao ponto de introduzir a faculdade deixada a cada um de viver na sua cultura.
Nascido do combate pela emancipação dos povos, o relativismo desemboca no elogio da servidão. Quer isto dizer que é preciso voltar às velhas receitas assimilacionistas e separar novos recém-chegados da sua religião ou da sua comunidade étnica? A dissolução de qualquer consciência colectiva deve ser o preço a pagar pela integração? De forma alguma. Tratar o estrangeiro como indivíduo não é obrigá-lo a moldar todas as suas condutas às maneiras de ser em vigor para os autóctones, e podermos denunciar a desigualdade entre homens e mulheres na tradição islâmica sem, por isso, querer vestir os imigrados muçulmanos com uma libré de empréstimo ou destruir os seus laços comunitários. Apenas aqueles que raciocinam em termos de identidade (e portanto de integridade) cultural pensam que a colectividade nacional necessita, para a sua própria sobrevivência, do desaparecimento das outras comunidades. O espírito dos tempos modernos, no que lhe diz respeito, acomoda-se muito bem à existência de minorias nacionais ou religiosas, com a condição de estas serem compostas, segundo o modelo da nação, por indivíduos iguais e livres. Esta exigência implica lançar na ilegalidade todos os usos - incluindo aqueles cujas raízes mergulham no mais profundo da História - que ofendem os direitos elementares da pessoa.
É inegável que a presença na Europa de um número crescente de imigrados do Terceiro Mundo coloca problemas inéditos. Estes homens, empurrados para fora da sua terra pela miséria e traumatizados, ainda por cima, pela humilhação colonial, não podem sentir, em relação ao país que os recebe, a atracção e a gratidão que experimentavam, na sua maioria, os refugiados da Europa oriental. Invejada pelas suas riquezas, odiada pelo seu passado imperialista, a sua terra de acolhimento não é uma terra prometida. Contudo, uma coisa é certa: não é fazendo da abolição dos privilégios a prerrogativa de uma civilização, não é reservando aos Ocidentais os benefícios da soberania individual e do que Tocqueville chama a “igualdade de condições” que nos encaminharemos para a resolução destas dificuldades.

Alain Finkielraut, A Derrota do Pensamento, 1987

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