06 novembro 2010

Sebastião da Gama


Há poetas que, pela brevidade da sua vida ou por alterações mais ou menos súbitas e radicais das sociedades em que viveram e se construíram ou ainda pelas modas que se vão sucedendo nos meios ditos intelectuais e artísticos, são esquecidos durante demasiados anos. Os exemplos são demasiados para se dar conta de todos eles num só blog e de uma só vez. Decidimos, assim, Nicolau Saião e eu, de comum acordo relembrar, hoje, um desses casos: o de Sebastião da Gama, falecido aos 27 anos, em 1952, cujos poemas, não se enquadrando em nenhum dos movimentos de maior influência do século XX, mais rapidamente ainda desapareceram dos projectos editoriais, das referências de críticos literários e das preferências dos pedagogos oficiais.
Cada um de nós deixa, pois, aqui um poema de diferente natureza, pretendendo, deste modo, abrir caminho ao interesse de quem não conhece a sua obra e à sua revisitação, por quem já desfrutou dela. O primeiro, aquele que seleccionei; o segundo, aquele que o inimitável Dr. Jagodes enviou ao indomável monfortino, conforme missiva em anexo.

***

Do nosso colaborador Doutor José Jagodes recebemos o seguinte "poema" que passamos a reproduzir.

De acordo com o Dr. Jagodes, que obteve a revelação do mestre universitário Prof.Doutor Pamplinas Miragaia, o nome do signatário é um evidente pseudónimo. Conforme investigações de ponta do ilustre Mestre alfacinha-coimbrão, a versalhada, claramente subversiva da Situação, teria sido produzida por um opositor descarado do governo em exercício, visando quiçá ajudar a "derrubar a gestão do senhor primeiro-ministro", conforme declarou ontem aos jornais, referindo-se ao ambiente geral de euforia, o festejado ministro Vieira da Silva, famoso não só pelas suas semi-barbas de alferes dos tempos de D'Artagnan mas também pela célebre tirada sobre a "espionagem política" a que alegadamente o nosso Alberto João se entregaria em conjunto com cerca de duzentos membros dos serviços secretos nacionais (aliás já reconhecidos no Diário do Governo, de acordo com a SIP e TVY).

Em vista do prestígio do Prof. Pamplinas, fica portanto liminarmente afastada a hipótese de a peça lírica ser dum aliás referenciado revolucionário satânico, já falecido, residente à época no Largo da Esperança nº 2 da conceituada e graciosa cidade de Estremoz, que usava para se disfarçar o nome suposto de Sebastião da Gama. E o panfleto subversivo (poesia, isto? Nááááh...) é assim:

Poesia depois da chuva

Depois da chuva o Sol - a raça.
Oh! a terra molhada iluminada!
E os regos de água atravessando a praça
- luz a fluir, num fluir imperceptível quase.

Canta, contente, um pássaro qualquer.
Logo a seguir, nos ramos nus, esvoaça.
O fundo é branco - cai fresquinha no casario da praça.
Guizos, rodas rodando, vozes claras no ar.

Tão alegre este Sol! Há Deus. (Tivera-O eu negado
antes do Sol, não duvidava agora.)
Ó Tarde virgem, Senhora Aparecida! Ó Tarde igual
às manhãs do princípio!

E tu passaste, flor dos olhos pretos que eu admiro.
Grácil, tão grácil!... Pura imagem da tarde...
Flor levada nas águas, mansamente...

(Fluida a luz, num fluir imperceptível quase...
)



Meu país desgraçado!...

E no entanto há sol a cada canto

e não há Mar tão lindo noutro lado.

Nem há Céu mais alegre do que o nosso,

nem pássaros, nem águas...

Meu país desgraçado!..

Por que fatal engano?

Que malévolos crimes

teus direitos de berço violaram?

Meu Povo

de cabeça pendida, mãos caídas,

de olhos sem fé

- busca, dentro de ti, fora de ti, aonde

a causa da miséria se te esconde.

E em nome dos direitos

que te deram a terra, o Sol, o Mar,

fere-a sem dó

com o lume do teu antigo olhar.

Alevanta-te, Povo!

Ah! visses tu, nos olhos das mulheres,

a calada censura

que te reclama filhos mais robustos!

Povo anémico e triste,

meu Pedro Sem sem forças, sem haveres!

- olha a censura muda das mulheres!

Vai-te de novo ao Mar!

Reganha tuas barcas, tuas forças

e o direito de amar e fecundar

as que só por Amor te não desprezam!

in Cabo da Boa Esperança

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