26 dezembro 2010

Das transformações das pulsões de defesa em prisões ideológicas


Ontem ao final da noite, dando uma volta pelos blogues do meu Miradouro, encontrei, na República das Santas Bicicletas, um post em que se transcrevem alguns dos poemas - belos poemas! - feitos, no Al-Andaluz, por poetas que viveram no que depois veio a ser o território a que se chama Portugal. Post que começa com uma citação de Fernando Pessoa, retirada do texto Da Ibéria e do Iberismo:

“Nós Ibéricos, somos o cruzamento de duas civilizações – a romana e a árabe. Somos, por isso, mais complexos e fecundos… Vinguemos a derrota que os do Norte infligiram aos Árabes nossos maiores. Expiemos o crime que cometemos, ao expulsar da Península os árabes que a civilizaram”.

Após tê-los lido, deparei com este comentário, assinado por Nuno Alves Pereira:

"Um dos truques agora da propaganda islamita é tentar dar os que invadiram a Europa por duas vezes como grandes civilizadores. Os de cá seriam uns bárbaros e os de Mafoma uns tipos sensacionais, civilizados e artistas, etc.
Basta ler-se a Históia dos Árabes na Espanha para se ver que o seu domínio de moderado e bonzinho nada teve.
Pelos vistos, nem este blogue já escapa à insidiosa propaganda.
Água mole em pedra dura…Pois é.
Os que por laxismo vão dando o rabo aos do Islão têm feito um belo trabalho.
Que pena."

Ao qual contrapus o que se segue:

"Caro Nuno Alves Pereira:

Se por acaso tem passado pelo meu blog e lido os textos que escrevi até à data, penso que não lhe restará qualquer dúvida quanto à minha posição relativamente ao que o Islão representa no mundo actual e à ameaça que ele constitui para a humanidade. Porque é um texto susceptível de interpretações perigosas para todos nós, inclusive para os verdadeiros crentes. Ao contrário do cristianismo, que tem vindo a depurar-se, lentamente e aos solavancos em zig-zag, dos ferra-braz que o utilizaram e continuam a procurar utilizá-lo, o islamismo tem reforçado, com ou sem verdadeiras razões, o lado matarruano do mundo. E isto porque o próprio texto, repito, o permite, num grau superior ao que é possível fazê-lo com os Evangelhos, muito mais claros e taxativos na explicitação dos seus princípios, permitindo uma maior e livre contestação das posições das hierarquias superiores. Basta, para o comprovar, realizar um verdadeiro estudo comparado das histórias internas do Cristianismo e do Islamismo.

Deixando de lado estes assuntos, porém, julgo que o Nuno Alves Pereira comete um erro próximo do mesmo tipo que pretende repudiar com o seu comentário. Quando Fernando Pessoa afirma que os Árabes civilizaram a Península não quer com isso dizer mais do que aquilo que quer significar ao afirmar, noutro passo, que o grande inimigo de Portugal é a França. De outra maneira: a França, a cultura francesa, não possui a experiência interior profunda e a riqueza que foram trazidas à Península pela influência cultural e religiosa de povos do Médio Oriente que nela se integraram, passando a fazer parte de uma subtileza de alma que não se encontra nos povos do centro da Europa, de raiz românica e bárbara. Ao tornar-se dominante, por motivos de ordem histórica, essa cultura centro europeia aspira a abafar tudo o que não seja ela própria como forma de dominar efectivamente, o que só se consegue, como é sabido, moldando as mentalidades à medida do que é necessário ao dominador. A concepção de racionalidade que desembocará no Iluminismo do século XVIII tem como base ser a razão o instrumento e a medida do que deve ser considerado válido, verdadeiro: a razão interpretada desse modo auto-avalia-se como o único instrumento de descoberta e determinação do real; o que cai fora desse conceito de razão não pode ser considerado racional, logo, real. Trata-se de um argumento circular, popularmente conhecido como o argumento da "pescadinha de rabo na boca". Este cartesianismo, que extravasa o próprio Descartes, está na origem da autojustificação que a si mesmos deram as elites, regimes e sistemas políticos europeus dominantes desde os meados desse século até aos nossos dias (até ao século XVII, quando se falava em cultura, falava-se em Península Ibérica)

Pessoa compreendia isto muito bem, daí considerar a França como o inimigo por excelência do modo de estar português, resultante de uma vivência dispersa -frequentemente demasiado dispersa- e de carácter ecuménico, se assim podemos dizer, no sentido que Agostinho da Silva dá ao termo. E daí também que considerasse os Árabes como civilizadores dos portugueses, enquanto essa herança nos distingue dos restantes que connosco partilham e são provenientes do tronco comum romano. Com todas as consequências, positivas e negativas, que tal acarretou e acarreta -e aqui chamo de novo a atenção para Agostinho da Silva.

Falar de poesia islâmica ibérica, divulgá-la, não é, pois, fazer a apologia do que se passa no islamismo actual nem no Islão, mas simplesmente olharmos para nós mesmos e vermo-nos integral e dignamente. O resto é atraiçoarmo-nos e perdermo-nos nos meandros em que nos querem encerrar. Seria, isso sim, cedermos à tirania dos que atraiçoam toda e qualquer religião ou sistema de pensamento."

Deixo isto aqui como uma mera introdução, insuficiente e incompleta, a algo que, pouco a pouco, procurarei abordar mais explícita e profundamente no futuro.

1 comentário:

confraria_da_alfarroba sociedade de irresponsabilidade e limitada disse...

Apenas uma achega: Fernando Pessoa afirma, o que afirma, numa época em que o regime (dito estado novo) procurava impor a sua "visão histórica"... "Mouros" passa a ter um sentido altamente depreciativo e, ainda hoje prevalece a "provocação" de que a sul de Coimbra somos todos mouros... outros ditos insultuosos provenientes dessa mentalidade acalentada pelo "botas" diz: "alentejanos, algarvios, ilhéus e cães de caça é tudo a mesma raça".

Nada tenho a ver com este tipo de provocações - considero (apenas) que há que separar as 2 águas. Uma é o legado cultural de um povo, outra é o comportamento actual dos seus lideres religiosos que provocam e fomentam ódios contra aqueles a quem chamam infiéis - nada de novo...
Os cristãos também queimaram infiéis... Outros infiéis.
Mais:... Jamais poderei estar a favor do islamismo. Até porque sou ateu confesso, gosto de carne de porco e de enchidos e, sobretudo, de bom vinho. Com estes 3 ou 4 comportamentos pecaminosos sou um bom candidato a morrer à pedrada em nome de um qualquer deus vingativo (todos(?)).

Vai para uns anos bons, debati-me contra as diversas seitas que defendiam "a arte ao serviço do povo" e outras balelas. Hoje não estou disponível, mesmo, para me debater com nenhum tipo de fundamentalismo - seja religioso ou político. Não, não tenho partido nem tomo. Recuso - a bem da minha saúde mental.

Editor da "república das santas bicicletas"