19 dezembro 2010

Em falta com eles e comigo

António José Forte

O texto, acompanhado da mensagem que o antecede, foi-me enviado por Nicolau Saião cinco dias atrás, 14 de Dezembro, portanto. Entretanto já publicado na República das Santas Bicicletas, nele lembra Saião um outro poeta que me é caro, pela força da sua poesia. Aos dois, as minhas desculpas por não os haver divulgado em devido tempo, mas confesso que, no meio da multidão de pequenas coisas pelas quais a minha atenção foi obrigada a dispersar-se, só hoje reparei que estava em falta - com eles e comigo mesmo. Aqui fica, portanto.

Caros/s amigas/os e confrades:

É esta a minha lembrança de Natal para todos.

E quem levará a mal que ela consista fundamentalmente na evocação de um Poeta que morreu faz amanhã precisamente 22 anos?

O tempo é um cavalo - dizia um meu amado familiar. E é verdade. Será um lugar-comum? Não importa, a verdadinha é que os dias se evolam como... Mas cá estou eu a divagar, pecha que sempre me acompanhou - e agora já dela não vou desistir, quem me comeu a carne que me roa os ossos como diz o ditado e... Mas adiante!

Conferirão de pronto que faz sentido recordar este Poeta, como fará sentido, lá para o outro ano, relembrar outros e dos maiores. A talho de foice: Irene Lisboa, essa maravilhosa "lupa refrangível" como lhe chamou Raul de Carvalho, outro que, também ele, os podões bem colocados têm posto fora da carroça, o que se entende perfeitamente. (A velha questão das sombras, 'tão a topar?), Afonso Duarte, José Blanc de Portugal, José Cutileiro...Mas basta por ora, o que for soará se antes não me der o vento suão...(safa! como dizia com graça o nosso Presidente).

Atalhando razões, que daqui a pouco me vou embora a preparar a viagem da Quadra: que tudo vos corra bem neste tempo de alegrias festivas e algumas nostalgias propiciadas, creio eu, pela realidade da aventura de viver. Que a todos (excepto alguns felizardos) toca. Et comment!, como dizia o Outro.

Mas isso é outra estória, que agora (pelo menos agora, carago!) não vem a capítulo...

Recebam o abraço bem firme do vosso

n.



LEMBRANÇA DE NATAL

SOBRE A POESIA DE ANTÓNIO JOSÉ FORTE (Póvoa de Santa Iria, 6 de Fevereiro de 1931 – Lisboa, 15 de Dezembro de 1988)

Dizia Ernesto Sampaio em “A única real tradição viva” que “É esta a orla de um tempo onde todo o pensamento grande e rigoroso vai dar ao Inferno”.

Noutro continente, por seu turno, referia Chesterton que “Todo o encadeamento de palavras leva ao êxtase, todos podem levar ao país das fadas”. É pois entre florestas e sombras inquietantes ou surpreendentes que se movem as vozes dos Poetas, uma vez que a razia social, se acaso consente a maravilha, muito mais desejaria essas vozes perenemente sob um sol negro de amargura. Nestes tempos do fim como lhes chamou André Coyné, a Poesia move-se com dificuldade e é deslocando-se entre Sila e Caríbdis que a nave poética busca chegar a bom porto.

Não tenhamos ilusões: o Poeta que o é e não simples abonador de prestígios em verso para maior glória dos seus donos, tem sempre pela frente a insídia das horas do quotidiano policiado – mesmo sendo homem de paz – da intolerância social das aparelhagens sediadas nos pólos onde a avidez, o interesse orientado, a mesquinhez, a corrupção judicial e a fraude pública ditam as suas leis.

Para os que persistem em opor aos desvigamentos sociais do dia-a-dia uma palavra alta e clara, já Gilbert Proteau nos esclareceu qual o destino mais provável: a corda, o punhal, o garrote, as difamações geralmente impunes, o calabouço e, nos casos mais suaves, a marginalização. Aos que acaso escapam, resta em geral uma vida de dificuldades que, entre nós, se cifra na “apagada e vil tristeza” dum mundo que não pode e não quer consentir a liberdade luminosa de ser-se “profeta e aedo num país onde só querem que haja lapuzes e vilões”, para citar Manuel Carreira Viana.

A poesia de António José Forte, falecido em meados de 1989, ilustra de maneira perfeita o trajecto de quem não cede e persiste em procurar a casa encantada em cujo telhado crescem floridas excrescências carnosas, o “palácio ideal” que Cheval levou à prática e tantos outros tentam erguer ora aqui ora ali, entre bosques primordiais e estranhas muralhas de granito.

Desde o seu primeiro livro “Trinta noites de insónia de fogo nos dentes numa girândola implacável” até aos poemas finais dados a lume na Editorial Estampa, passando pelo texto que tinha como personagem nuclear Daniel Cohn-Bendit vindo a público na revista “Grifo”, imediatamente retirada de circulação pela PIDE que impediu a publicação de novos números, sente-se perpassar uma grande inquietação temperada, todavia, pela ternura dos seus melhores momentos. As imagens encadeiam-se de forma inusitada, sempre muito próximas de um “real absoluto” que punha em destaque o amor e o conhecimento do mundo onde as figuras estendiam salutarmente de mão em mão os objectos comuns como um cigarro ou uma chave.

Lembro, das conversas havidas ao velejar dos minutos ao fim da tarde ou já na noite colectiva, o interesse que Forte tinha pelos grandes mistérios da existência (pirâmides de Tenochtitlan, as construções desenhadas na planície desértica de Nazca…) e, em contraponto, os enigmas contidos na existência quotidiana habitual, que lhe pareciam ultrapassar os outros em fascínio e estranheza. Esse quotidiano onde ele “passasse a fumar/ e o fumo fosse para se ler”.

A poesia de António José Forte foi-me dada pela primeira vez a ler por Donato Faria, seu companheiro de emprego nas bibliotecas itinerantes da Gulbenkian, numa das nossas habituais reuniões (já Forte saíra de Portalegre para ir trabalhar na Casa mãe) na pensão da Rua 31 de Janeiro, frente à taberna Capote e cujas janelas de terceiro andar deitavam para o Largo da Sé – sempre repleto de gente, principalmente rapazes e raparigas alunos da Escola do Magistério Primário, nesses anos em que a cidade não mergulhara ainda na desertificação que hoje a caracteriza em geral e no casco histórico em particular.

Foi ali que este me mostrou os “Cadernos Pirâmide” da responsabilidade de Carlos Loures e Máximo Lisboa. Era a segunda vaga surrealista, que trazia nela autores como Manuel de Castro, o magnífico poeta de “Estrela Rutilante” que teria como pares, no desenho e na pintura, as explosões singulares de Mário Botas e José Escada, posto que actuassem por outras bandas.

Mergulhando inelutavelmente no sonho de todas as horas, interiores e exteriores, a poesia surrealista desses tempos, seguidos logo de outros onde mais autores se forjavam, forçava por libertar-se dos enleios do hábito, do conformismo imposto por condottieri exteriores, geralmente literatos subidos ao poder administrativamente e nele mantidos pelos mandantes dentro e fora dos órgãos de comunicação e das estantes desses lugares de massacre que demasiadas vezes são os “estabelecimentos de ensino” de alto coturno. E em que o lirismo, mais que ser apenas “um epigonismo da prisão de ventre” como Cesariny dizia com justa ferocidade, seria luz revelada na noite geral.

O lirismo de Forte, separado – por uma brusca mutação interior – daquele que ainda hoje se expande em revoadas de folhas propiciadas por tanto vate de ocasião (ou, o que ainda é pior, por operadores de safada carreira cimentada por áulicos), aspirava à realidade, essa realidade outra (surrealidade) em que as mãos, por exemplo, já não são objectos para prender os movimentos alheios mas sinal palpável de fraternal sabedoria alcançada, pomo finalmente liberto abrindo fulgores diferentes e mais autênticos.

Contra a quinquilharia que frequentemente fere o viajante, a sua poesia é susceptível de criar em quem a lê um apetite de melhor e menos banal. A sua adjectivação, que nunca bordeja as margens do efémero ou do destrambelhadamento pseudo-original, que nunca reside e se deixa cair na redundância pretensiosa mas é antes um sublinhar de adequadas iluminações, faz passar de estrofe para estrofe símbolos que extinguem a inutilidade das escritas que acatitam a leitura.

Dizia Étienne de Sénancour: “O homem é perecível; pode ser…Mas pereçamos resistindo e se, ao fim, o que nos espera é o vazio e o nada façamos com que isso seja uma injustiça”. A poesia de António José Forte, que permanece nos nossos ouvidos e na nossa cabeça muito depois de ser lida, ilustra de forma soberana como é possível lançar, aos deuses programados e programadores, o grande desafio dos que sabem ser e dar-se a si mesmos como penhor de que não foi em vão a passagem dum Poeta pelas planícies do tempo destroçado.

ns


TRÊS POEMAS DO LIVRO UMA FACA NOS DENTES


AINDA NÃO

Ainda não

não há dinheiro para partir de vez

não há espaço de mais para ficar

ainda não se pode abrir uma veia

e morrer antes de alguém chegar

ainda não há uma flor na boca

para os poetas que estão aqui de passagem

e outra escarlate na alma

para os postos à margem.

ainda não há nada no pulmão direito

ainda não se respira como devia ser

ainda não é por isso que choramos às vezes

e que outras somos heróis a valer

ainda não é a pátria que é uma maçada

nem estar deste lado que custa a cabeça

ainda não há uma escada e outra escada depois

para descer à frente de quem quer que desça

.

ainda não há camas só para pesadelos

ainda não se ama só no chão

ainda não há uma granada

ainda não há um coração


POEMA

Alguma coisa onde tu parada

fosses depois das lágrimas uma ilha,

e eu chegasse para dizer-te adeus

de repente na curva duma estrada

alguma coisa onde a tua mão

escrevesse cartas para chover

e eu partisse a fumar

e o fumo fosse para se ler

alguma coisa onde tu ao norte

beijasses nos olhos os navios

e eu rasgasse o teu retrato

para vê-Io passar na direcção dos rios

alguma coisa onde tu corresses

numa rua com portas para o mar

e eu morresse

para ouvir-te sonhar


O BOM ARTÍFICE

Entretanto

dez séculos mais tarde no local do drama

o diabo

diante do seu fomo

levanta por instantes seus doces olhos

para quatro mil cadafalsos

Vêde

mais além o bom artífice

mostrando

anjos

ou

batéis

ainda uma canção

se gostais

de belas torturas

não ouvireis nada

(Prefácio de Herberto Helder
Parceria A.M. Pereira
Livraria Editora, Lda.)

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