26 dezembro 2010

Três poemas a propósito do Natal

São três belíssimos poemas de Nicolau Saião, do seu Escrita e o seu contrário, que ontem tencionava publicar conjuntamente com os dois trabalhos plásticos, mas dos quais, no meio da azáfama do costume, me esqueci. Deliciem-se.


Dali, Cristo de São João em Pathmos


RECEITA PARA UM NATAL

Primeiro, ficar parado

durante um momento, de pé

ou sentado, numa sala ou mesmo

noutra dependência do lar.

Depois preparar

os olhos, as mãos, a memória

e outros utensílios indispensáveis. A seguir

começar a reunir

coisas, por ordem bem do interior

do coração e do pensamento:

a ternura dos avós, uma mancheia;

rostos de primos distantes, uma pitada;

sons de sinos ao longe, quanto baste;

a recordação duma rua, uns bocadinhos

um velho livro de quadradinhos

duas angústias mais tardias, alguns restos de azevias,

a lembrança de vizinhos ainda vivos mas ausentes

e de uns já passados.

Quatro beijos de seres amados ou de parentes

um cachecol de boa lã cinzenta aos quadrados

e um pouco de azeite puro e fresco

igual ao que a mãe usava noutro tempo saudoso.

Mexe-se bem, leva-se ao forno

e fica pronto e saboroso

- mesmo que, nostálgica, se solte uma pequena lágrima.


UM NATAL ÀS CORES

Em geral estava frio. Um frio límpido e seco

com um tom de cobalto muito escuro no horizonte, quando

surgiam no céu os primeiros luzeiros de Orion ou da

Ursa Maior. Para os lados de Ocidente, a seguir à noitinha, um clarão

débil propagava-se sobre o bosque de castanheiros: e eram as luzes

da cidade acocorada no princípio da aba da Serra, estendida

no pequeno vale para lá das colinas e dos pinhais.

Às vezes

chegava alguém até ao muro da azinhaga – primeiro sinal

de casas e de gente: e eram vizinhos das quintas em volta, alguns bufarinheiros

com a sua mala de corre-mundos, um que outro mendigo mais afeito

aos campos e à sua generosidade em que as Estações

se sucediam com figos, castanhas, laranjas ardentes de sumo e de cor, o bom pão dormido e coberto de toucinho rechinante ou rescendente de frescura

com o queijo duro e a manteiga entre duas capas de presunto. Porque à gente

de boa paz nunca se negava, por vontade do Pai e da Mãe,

o aconchego do estômago e uma que outra placa desviada ao serviço

de domésticas, económicas utilizações. E havia o tio Noitinhas

que, contava-se, fora rico e decaíra; o tio Chico do Mel (esse levava sempre, porque tinha o meu nome, um pedaço de chouriço ou de paio, de reforço);

a ti’ Ana Grila, que corria Ceca e Meca desbastando por dentro

a saudade de um filho e de um marido que lhe haviam morrido de desastre

lá para as lisboas da construção civil; e o tio Martinho,

sempre com um canito à ilharga: figura e retrato escarrapachado

do homem-do-saco que tantas vezes me faria

comer o prato sem tardança, ele que era manso e sereno

como um irmão de Heliópolis e cuja voz,

tirante as barbaças de monge, era suave posto que rouca e mais afeita

a dialogar com o rafeiro que a assustar fosse quem fosse.

Mas as crianças, já se sabe, vêem o tempo

com olhos maravilhados e sobre a sua imaginação corre uma brisa

deslumbrante e divina que lhes permite ver um emissário de mistérios e segredos

num pobre pedinte alentejano.

E depois, quase de repente, era Natal. Com todas as suas

maravilhas incógnitas: o grão cozido e pisado para o recheio

das azevias largas como uma palma de mão

ou diminutas

como um ninho de andorinha-do-mar; o bacalhau que o Pai trouxera

da cidade de juntura com misteriosos embrulhos

encaminhados à socapa para as secretas geografias das gavetas

da cómoda grande; a Tia cortando o pão

para a sopa de cação apaladado de alho

e demais ervas próprias, a Mãe estendendo o manto

das filhós depois fritas com cuidados e saberes de alquimista, a Mana

que ajudava neste e naquele trabalho para depois saber

quando crescesse com filhos e responsabilidades por dentro

e nas mãos operosas. E, pela noite,

vinham então a vizinha Mari'José, o vizinho Manuel Planeta, as filhas

Jacinta e Júlia e, às vezes, a minha Avó das histórias

com seu saquinho de malhas, lá de longe das Arronches,

e no meio duma conversa, dum riso, duma garfada, dling dlong

e era já meia-noite? Já, a missa do galo sentida por cima dos pinheiros, chegada

da capela de S. Cristóvão ainda não havido o Atalaião?

Sinal de fraternidade na noite subitamente silenciosa.

Um Natal às cores. Com as cores do passado. Fotografado

pela memória da infância e da recordação agradecida.


NATAL ZERO OITO

Quem fala de Natal perde palavras

à entrada do Inverno, na secura dos dias

no vasto frio das noites, tão lúcidas e antigas

tão de infância e de Agosto. O fogo

misturado: árvores, luzes, fantasmas

e as doces mãos das Avós. E ainda

um postal velho velho cheio de vento e de memórias.

Quem fala de Natal perde palavras, ganha

e perde as demais coisas que as palavras edificam.

Quem grita no Natal? E Deus

não os fulmina? “. Quem mergulha os seus pulsos

na fria água do rio? Com seus chapéus à banda

em barcos engalanados

os anjos vão passando, dizendo amores esquecidos

dizendo estranhas frases, assombrando as moradas

onde afinal não nasce o tal de Nazareth. O sal e o

pão terrenal dos que ainda não foram

pelo ar, pela vida, pelos túmulos vazios.

Sim, pelo Natal as pobres casas em ruínas.

Para ser do Natal é preciso possuir

uma lembrança ardente, um brinquedo estripado

e muita tristeza feita nos anos em leilão

dos retratos tombando com um nó na garganta.

Para ser do Natal é preciso morrer

e viver de seguida com o sangue nos braços

esperando a estrela fixa do brusco espanto nocturno

junto à porta perdida dum milagre adiado.

Ah falar de Natal! Quem o consente?

O pão e o sal

talvez

de toda a gente. E um olho de animal

pairando no poente. Decisivo, visceral. E Deus, pobre dele

abrindo a água lustral (no bem, no mal)

frente ao horror da morte

terrena e inocente.

Por isso, no Natal

os segredos demoram

e tudo muda e tudo se envolve num pano branco barato

para que ninguém esqueça um corpo ferido que por debaixo jaz

uma nova e desconhecida espécie de cadáver achado na ilha

dos animais inominados

e outras diversas coisas que por desespero se não apontam.

No Natal treme a casa, a casa

sempre caiada, como um sepulcro sem número e sem nome.

E o inventário dá, se estiver certo:

um coração ardido todo azul

uma recordação minúscula que se guardou num bolso

um riso salutar ensanguentado

uma pequena ironia desenhada a tinta de colegial

uma apenas esboçada mão posta sobre um antebraço

o lenço de cabeça duma tia que desapareceu na manhã

um gato tranquilamente dormindo ao cimo das escadas

uma rosa e uma palavra que a si mesmas se julgaram

duas mãos de pedra tremendo atravessadas por uma ferida

numa cruz de pólo a pólo

um hálito que soprado no peito nos enlouquece

um arrepio, uma agonia

uma tarde a fechar-se repleta de amargura e de alegria.

Talvez o Natal seja um rosto

ou uma madrugada de outono

ou um avião nocturno

ou um verão por detrás das coisas aparentes

ou um combatente jazendo de borco numa pia baptismal

ou os bramidos de dois seres abandonados encarando-se de súbito

numa rua da cidade

no escuro muito escuro de uma cidade do universo

quer dizer – luminosa e aterrada. E talvez

que tudo afinal esteja a mais, que tudo afinal

se resuma a filhós e azevias de um outrora

a canecas de café familiar

algures num horizonte, numa idade, num momento

no imenso murmúrio de uma voz sulcando o tempo.

E a chuva que diabo irá cobrindo tudo

no infinito Natal dos mundos desaparecidos.



Dali, A persistência da memória

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