São três belíssimos poemas de Nicolau Saião, do seu Escrita e o seu contrário, que ontem tencionava publicar conjuntamente com os dois trabalhos plásticos, mas dos quais, no meio da azáfama do costume, me esqueci. Deliciem-se.
Primeiro, ficar parado
durante um momento, de pé
ou sentado, numa sala ou mesmo
noutra dependência do lar.
Depois preparar
os olhos, as mãos, a memória
e outros utensílios indispensáveis. A seguir
começar a reunir
coisas, por ordem bem do interior
do coração e do pensamento:
a ternura dos avós, uma mancheia;
rostos de primos distantes, uma pitada;
sons de sinos ao longe, quanto baste;
a recordação duma rua, uns bocadinhos
um velho livro de quadradinhos
duas angústias mais tardias, alguns restos de azevias,
a lembrança de vizinhos ainda vivos mas ausentes
e de uns já passados.
Quatro beijos de seres amados ou de parentes
um cachecol de boa lã cinzenta aos quadrados
e um pouco de azeite puro e fresco
igual ao que a mãe usava noutro tempo saudoso.
Mexe-se bem, leva-se ao forno
e fica pronto e saboroso
- mesmo que, nostálgica, se solte uma pequena lágrima.
UM NATAL ÀS CORES
Em geral estava frio. Um frio límpido e seco
com um tom de cobalto muito escuro no horizonte, quando
surgiam no céu os primeiros luzeiros de Orion ou da
Ursa Maior. Para os lados de Ocidente, a seguir à noitinha, um clarão
débil propagava-se sobre o bosque de castanheiros: e eram as luzes
da cidade acocorada no princípio da aba da Serra, estendida
no pequeno vale para lá das colinas e dos pinhais.
Às vezes
chegava alguém até ao muro da azinhaga – primeiro sinal
de casas e de gente: e eram vizinhos das quintas em volta, alguns bufarinheiros
com a sua mala de corre-mundos, um que outro mendigo mais afeito
aos campos e à sua generosidade em que as Estações
se sucediam com figos, castanhas, laranjas ardentes de sumo e de cor, o bom pão dormido e coberto de toucinho rechinante ou rescendente de frescura
com o queijo duro e a manteiga entre duas capas de presunto. Porque à gente
de boa paz nunca se negava, por vontade do Pai e da Mãe,
o aconchego do estômago e uma que outra placa desviada ao serviço
de domésticas, económicas utilizações. E havia o tio Noitinhas
que, contava-se, fora rico e decaíra; o tio Chico do Mel (esse levava sempre, porque tinha o meu nome, um pedaço de chouriço ou de paio, de reforço);
a ti’ Ana Grila, que corria Ceca e Meca desbastando por dentro
a saudade de um filho e de um marido que lhe haviam morrido de desastre
lá para as lisboas da construção civil; e o tio Martinho,
sempre com um canito à ilharga: figura e retrato escarrapachado
do homem-do-saco que tantas vezes me faria
comer o prato sem tardança, ele que era manso e sereno
como um irmão de Heliópolis e cuja voz,
tirante as barbaças de monge, era suave posto que rouca e mais afeita
a dialogar com o rafeiro que a assustar fosse quem fosse.
Mas as crianças, já se sabe, vêem o tempo
com olhos maravilhados e sobre a sua imaginação corre uma brisa
deslumbrante e divina que lhes permite ver um emissário de mistérios e segredos
num pobre pedinte alentejano.
E depois, quase de repente, era Natal. Com todas as suas
maravilhas incógnitas: o grão cozido e pisado para o recheio
das azevias largas como uma palma de mão
ou diminutas
como um ninho de andorinha-do-mar; o bacalhau que o Pai trouxera
da cidade de juntura com misteriosos embrulhos
encaminhados à socapa para as secretas geografias das gavetas
da cómoda grande; a Tia cortando o pão
para a sopa de cação apaladado de alho
e demais ervas próprias, a Mãe estendendo o manto
das filhós depois fritas com cuidados e saberes de alquimista, a Mana
que ajudava neste e naquele trabalho para depois saber
quando crescesse com filhos e responsabilidades por dentro
e nas mãos operosas. E, pela noite,
vinham então a vizinha Mari'José, o vizinho Manuel Planeta, as filhas
Jacinta e Júlia e, às vezes, a minha Avó das histórias
com seu saquinho de malhas, lá de longe das Arronches,
e no meio duma conversa, dum riso, duma garfada, dling dlong
e era já meia-noite? Já, a missa do galo sentida por cima dos pinheiros, chegada
da capela de S. Cristóvão ainda não havido o Atalaião?
Sinal de fraternidade na noite subitamente silenciosa.
Um Natal às cores. Com as cores do passado. Fotografado
pela memória da infância e da recordação agradecida.
NATAL ZERO OITO
Quem fala de Natal perde palavras
à entrada do Inverno, na secura dos dias
no vasto frio das noites, tão lúcidas e antigas
tão de infância e de Agosto. O fogo
misturado: árvores, luzes, fantasmas
e as doces mãos das Avós. E ainda
um postal velho velho cheio de vento e de memórias.
Quem fala de Natal perde palavras, ganha
e perde as demais coisas que as palavras edificam.
“Quem grita no Natal? E Deus
não os fulmina? “. Quem mergulha os seus pulsos
na fria água do rio? Com seus chapéus à banda
em barcos engalanados
os anjos vão passando, dizendo amores esquecidos
dizendo estranhas frases, assombrando as moradas
onde afinal não nasce o tal de Nazareth. O sal e o
pão terrenal dos que ainda não foram
pelo ar, pela vida, pelos túmulos vazios.
Sim, pelo Natal as pobres casas em ruínas.
Para ser do Natal é preciso possuir
uma lembrança ardente, um brinquedo estripado
e muita tristeza feita nos anos em leilão
dos retratos tombando com um nó na garganta.
Para ser do Natal é preciso morrer
e viver de seguida com o sangue nos braços
esperando a estrela fixa do brusco espanto nocturno
junto à porta perdida dum milagre adiado.
Ah falar de Natal! Quem o consente?
O pão e o sal
talvez
de toda a gente. E um olho de animal
pairando no poente. Decisivo, visceral. E Deus, pobre dele
abrindo a água lustral (no bem, no mal)
frente ao horror da morte
terrena e inocente.
Por isso, no Natal
os segredos demoram
e tudo muda e tudo se envolve num pano branco barato
para que ninguém esqueça um corpo ferido que por debaixo jaz
uma nova e desconhecida espécie de cadáver achado na ilha
dos animais inominados
e outras diversas coisas que por desespero se não apontam.
No Natal treme a casa, a casa
sempre caiada, como um sepulcro sem número e sem nome.
E o inventário dá, se estiver certo:
um coração ardido todo azul
uma recordação minúscula que se guardou num bolso
um riso salutar ensanguentado
uma pequena ironia desenhada a tinta de colegial
uma apenas esboçada mão posta sobre um antebraço
o lenço de cabeça duma tia que desapareceu na manhã
um gato tranquilamente dormindo ao cimo das escadas
uma rosa e uma palavra que a si mesmas se julgaram
duas mãos de pedra tremendo atravessadas por uma ferida
numa cruz de pólo a pólo
um hálito que soprado no peito nos enlouquece
um arrepio, uma agonia
uma tarde a fechar-se repleta de amargura e de alegria.
Talvez o Natal seja um rosto
ou uma madrugada de outono
ou um avião nocturno
ou um verão por detrás das coisas aparentes
ou um combatente jazendo de borco numa pia baptismal
ou os bramidos de dois seres abandonados encarando-se de súbito
numa rua da cidade
no escuro muito escuro de uma cidade do universo
quer dizer – luminosa e aterrada. E talvez
que tudo afinal esteja a mais, que tudo afinal
se resuma a filhós e azevias de um outrora
a canecas de café familiar
algures num horizonte, numa idade, num momento
no imenso murmúrio de uma voz sulcando o tempo.
E a chuva que diabo irá cobrindo tudo
no infinito Natal dos mundos desaparecidos.
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