Ontem liguei a tv, era para aí um quarto para a uma da tarde. Na RTP1, em diálogo com Jorge Gabriel e Sónia Araújo, sentados lado a lado, estavam, também lado a lado sentados, Bagão Félix e Júlio Machado Vaz. Falava-se da crise - a económica, mais, a talhe de foice, como sempre, as outras que ela arrasta consigo. Como tenho algum respeito pela opinião de ambos os convidados, fiquei a ouvir. Para, pouco depois, ficar a perceber como duas pessoas lúcidas (embora, como se sabe, com pontos de vista divergentes sob bastantes aspectos) também podem escorregar, de vez em quando, na cartilha das perspectivas mais superficiais e perigosas do saber académico de estatísticas feito e, com isso, descaírem para posições humanamente pouco elegantes.
Veio à baila, como exemplo da mentalidade consumista que infectou, em geral, o comportamento dos portugueses e do que isso representa em termos do viver somente para o presente, o enorme acréscimo de vendas de automóveis registado no final de 2010 em Portugal e, sobretudo, na Grécia, devido ao aumento de preço que, pela subida do IVA em 2%, sofrerão no próximo ano. Sem que ninguém, aparentemente, se lembre das dificuldades e percalços que poderão surgir em consequência dos desenvolvimentos imprevisíveis da conjuntura económico -financeira actual, lembraram ambos.
É interessante que nem um nem outro se dêem conta de um importante elemento em jogo: o da necessidade que muitos portugueses têm de conjugar mais do que um emprego para fazer face à crise e de, para se deslocarem de um para o outro local de trabalho, não poderem contar nem com a abundância nem com a rapidez nem com um preço razoável dos transportes públicos. E que lhes vale muito mais comprar um novo, ou o seu primeiro, automóvel, não apenas porque de outro modo lhes seria impossível acumulá-los como também porque as reparações sucessivas de carros mais velhos e com maior desgaste lhes sairia mais dispendioso do que pagar as prestações de um outro, novinho em folha. Exemplos? Certamente, muitos dos professores a quem o ME atribuiu lugares em duas escolas em simultâneo, a distâncias entre os 30 e os 60 ou mais km uma da outra e em horários que exigem uma rápida deslocação entre ambas. Mas nem é preciso ir por aí: conheço dois não-professores - um deles, meu familiar - que acabaram de comprar carro por questões de sobrevivência semelhantes, acarretando com a respectiva prestação mensal durante os próximos cinco anos. Os quais, por sua vez, conhecem outros em idêntica situação. E por aí fora.
Machado Vaz referiu-se ainda, a propósito da diferença e da urgência de mudança de mentalidades, a um estudo comparativo entre os naturais dos países do Norte da Europa e os portugueses, no que respeita ao que é ou não essencial para o bem-estar económico, pessoal e colectivo e, em geral, para se viver. Para os nórdicos, o essencial será, quanto ao primeiro aspecto, a permanente aquisição e aprofundamento de competências profissionais; quanto ao segundo, a existência de condições para o exercício da cidadania (!). Para o portuga, o essencial é, em ambos os casos, o apoio recebido, desde a família ao Estado, passando pelos amigos. Retirava daí Machado Vaz a conclusão, apoiada por Bagão Félix, de que a sociedade portuguesa continua a funcionar com base no conhecimento, na “cunha” e no apadrinhamento, ou melhor: a não funcionar, e que é indispensável alterar esta mentalidade se quisermos sair situação em que nos encontramos.
Não poderia eu estar mais de acordo com ambos quanto à urgência e ao carácter decisivo da mudança de mentalidade. Mas sem que me esqueça, igualmente, da multidão de gente licenciada, bem como daqueles que apostaram numa cada vez maior especialização, concluindo mestrados e doutoramentos, a trabalhar, dentro das fronteiras, em áreas e lugares que nada têm a ver com o seu percurso e habilitações académicas; e dos que, aos milhares, emigraram e continuarão a emigrar para conseguirem singrar ou simplesmente iniciar as actividades profissionais para que se prepararam devidamente. Nem daqueles que apenas o conseguiram fazer “cá dentro” porque… “alguém mexeu os cordelinhos”.
Nem que me esqueça de que uma boa parte desses licenciados, mestres e doutorados, o são em áreas que, embora vitais para qualquer país (só a “merceeirada” da política julga que não o são), apenas podem ser desenvolvidas em número proporcional naqueles em que reine a abundância, isto é, onde haja dinheiro que sobre em quantidade suficiente para as financiar devidamente. Falo, obviamente, das chamadas Ciências Humanas, cujos cursos se multiplicaram como cogumelos (frequentemente, de qualidade duvidosa) no ensino superior particular, cursos “de papel e lápis”, que exigiam menor investimento por parte dessas instituições e que espalharam drs. por todo o Portugal. Porque o que era preciso era ser dr. e semear drs., para que houvesse dinheiro para os Doutores & Outrem e Portugal pudesse ser o raio de um dr. de um país...!
O dr. Bagão Félix fez parte, como (salvo erro) Secretário de Estado das Finanças, dos Governos da responsabilidade do Professor Cavaco Silva, o qual permitiu esta bagunçada sob a batuta inicial do seu primeiro Ministro da Educação, o sr. Engenheiro Roberto Carneiro. Tivesse ou não sido pessoalmente concordante com esse processo de mais do que previsíveis resultados, ficar-lhe-ia bem agora não calcar as vítimas aos pés. Quanto a Júlio Machado Vaz, conhece suficientemente bem os meandros do ensino superior português para não dizer o que disse com tal leveza.
Vasco Pulido Valente escreveu, duas semanas atrás, numa das suas crónicas no jornal PÚBLICO, uma frase lapidar sobre este assunto: “Um país não é rico porque é educado, um país é educado porque é rico”, embora, acrescentava, seja costume afirmar-se o contrário. Termino, pois, com ela o que nesta véspera do último Natal da primeira década do século e do milénio a estrear achei por bem dizer, de uma só penada e sem qualquer revisão de texto. A família que, legitimamente, reclama a minha presença limitou-me o tempo destinado aos desabafos que, em noite de Paz e Amor, irei amaciar, já de seguida, com uma bela e tradicional ceia, temperada com um tinto de Portalegre, digo-vos: de estalo!
Bom Natal a todos!
1 comentário:
Um tinto de Portalegre? Vou nisso, cara. Já lá estive, em Alpalhão, com minha prima Cidális que vive em Curitiba e tem parentes na terra alentejana. Comêmos na taverna de mestre Carraço, um cozinheiro de põe-te lá.
Daqui de Santa Maria de Tocantins te entrego meus respeitos, chaspa. Ponto vinte!
Rubém Glaécio de Amorim
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