24 setembro 2007

O divino, os carnavais e coisas que tais 2

Henri Rousseau

Na discussão que originou o primeiro post desta série, continua a existir, penso eu, mais do que uma confusão.
Uma diz respeito ao salto que frequentemente se dá, na argumentação, entre fé e religião. Esse salto só pode ser dado - e, mesmo assim, com várias reservas - quando se trata das religiões do Livro. Porque não existe qualquer fé no budismo ou no taoísmo, por exemplo, mas unicamente uma intuição radical, total, num plano semelhante ao que Descartes aponta como fundamento do conhecimento em si mesmo e que Platão e, em particular, Plotino, (para não falar de Hegel, de outra maneira) entenderam como o momento da sua aquisição definitiva. Uma coisa, porém, é intuir a existência do divino como fundamento de tudo e de mim mesmo, outra, a religião, que só pode provir de uma revelação divina ou de inferência humana sobre o que essa intuição traz consigo, incluindo as normas e os ritos destinados a confirmar e a celebrar a alegria desse encontro com a fonte eterna da vida.
Mas, como diz o mesmo Descartes, é preciso tornarmo-nos em atletas da intuição, aprender, pela prática continuada do exercício de pensar, a distinguir aquelas que são claras e distintas das nebulosas, das que ainda carregam em si elementos estranhos ou indevidamente ligados no raciocínio.
É por isso que, ao contrário do que o próprio Galileu disse, convictamente ou por conveniência, e que a partir daí foi usual dizer, a religião nem sequer pode ter a ver seja o que for com a moral. Na medida em que a intuição do divino varia, a ética que lhe está associada também; a única ética possível de ser associada à atitude religiosa é, assim, o respeito pelo outro enquanto participante ou criação do divino, quer dizer, enquanto nosso semelhante.
A religião como fundamento de normas morais, isto é, massificada, isto é, politizada, é o maior perigo que há, na medida em que estabelece uma antropologia definitiva e limitadora e qualquer uma que as estabeleça só pode vir a contar, mais tarde ou mais cedo, com as contradições entre a "razão" e a vontade, a revolta e a auto-destruição. Se a religião se arrogar ainda a acrescentar-se uma visão cosmológica será, como o foi para a cristandade ao arrepio dos Evangelhos, a tragédia que se viu, das quais ainda estamos em saldos de fim de estação. Essa é a forma abastardada da compreensão do divino, geradora de conflitos e sem a qual as pessoas viveriam bem melhor.
A intuição é um prelúdio ao conhecimento e, simultaneamente, um seu horizonte e quer um quer o outro exigem o desvelamento subsequente. A intuição do divino envolve a descoberta do encadeamento dos fenómenos na procura de os integrar no significado, no sentido da existência, mas apenas isso.
Pretendo eu dizer com isto que a dúvida é mais importante do que a crença e que o verdadeiro religioso é o que abençoa a própria dúvida? Sim. Só isso, obviamente, o tornará digno perante o seu deus, porque não o terá amado por cobardia ou medo, mas porque o quer amar face a face. E não é preciso sair do nosso século: só os “crentes” se escandalizaram e procuraram negar as dúvidas da Madre Teresa de Calcutá, vindas a público num livro publicado recentemente.
Pretendo eu dizer com isto que a esfera do religioso é semelhante à esfera do saber científico, sob este aspecto? Mais uma vez, sim. Então porque é que uma parte da humanidade não possui intuições sobre o divino ou se limita a crendices com interesses muito concretos? Possivelmente porque, da mesma maneira que há quem tenha intuições fundamentais em algo de tão abstracto como o raciocínio matemático ou estético, há quem as tenha em relação a um possível divino. Um ateu não tem essa intuição, do mesmo modo que Fernando Pessoa seria, talvez, um péssimo músico ou o excelente médico X, que demonstra uma intuição extraordinária para se orientar no meio de uma floresta de sintomas que a maioria dos seus colegas não consegue, será um péssimo artista plástico, porque não tem intuição espacial. Porquê? Dizer que está nos genes, não responde a nada: os genes são a expressão de uma possibilidade que a eles próprios permitiu que existissem e que lhe é obvia e necessariamente prévia. Haveremos de o saber, se decifrarmos o sentido da existência humana.
Um ateu vive muito bem, obrigado, se não vier um gajo qualquer dizer-lhe que é um deficiente “intuicional”. Vem um “crente” dizer-lhe: “Olha, não é por mal, mas tu és coxo de crenças, eu sou melhor do que tu, sou escorreito e o melhor é perceberes que se não for eu guiar-te, estás feito”. Não há paciência! Compreende-se! “Deficiente? Já te viste ao espelho, oh!, geniozinho da lâmpada?”. E não é que o ateu está carregado de razão? Se Deus fez o mundo, os ateus também são filhos dele, e portanto, se os fez que os ature; se formos todos deus, esquecidos de que o somos, os ateus lembrar-se-ão disso quando lhes for conveniente. Não se discute a existência do sentimento poético; quanto aos poemas, gosta-se ou não se gosta, estão de acordo com o nosso caminho ou acrescentam-nos. E eu posso não gostar ou mesmo recusar o que me traz uma determinada concepção do divino, senti-la mesmo contra a minha natureza (esse Paraíso violenta-me, meu!). A minha natureza é um facto e se a teoria não contempla o facto, é porque não é verdadeira. O problema é do teorizador.
Não aprendi isto sozinho. Passo a explicar: quando era jovenzinho, um dos amigos que fiz a certa altura tinha-se convertido recentemente ao islamismo. Se hoje em dia isso ainda seria maioritariamente considerado bizarro, nessa altura era mesmo quase inconcebível. A estranheza e a curiosidade que, naturalmente, lhe demonstrei geraram muitas horas de conversa entre os dois, bem como as minhas leituras do Corão e, depois, de livros de outras religiões que ele lera, antes da conversão, à mistura com os ateus Sartre e Nietzsche, de quem ele gostava particularmente.
Um dia em que fui até lá a casa, encontrei-o a falar com um amigo dele, que estudava o budismo. Entrei na conversa e, a dado momento, perguntei ao outro se ele acreditava em Deus. O meu amigo (parece-me estar ainda hoje a ver a cena) que estava de olhos baixos, ouvindo-nos, levantou de repente a cabeça, como se tivesse sido picado e disse-me num tom quase ríspido: “Pá!, isso não se pergunta a ninguém!!”. Fiquei tão surpreendido que não soube o que fazer e calei-me, sem sequer lhe perguntar porquê. Só descobri o que ele queria dizer e a sua reacção alguns dias depois. E nunca nenhum de nós chegou a falar com o outro sobre o assunto (escusado será dizer que ele não tinha grande apreço pela comunidade muçulmana portuguesa). Entretanto, tinha lido uma frase de Nietzsche de que nunca mais me esqueci: “Desconfiai dos berradores”.
Por hoje, chega. Quero que vocês se lixem. Nem revejo o texto, nem nada. Vou jantar, que já é tarde e tenho fome, seja lá qual for a razão que me fez com essa necessidade.
Até amanhã.

3 comentários:

alf disse...

Hummm, estou a perceber porque é que os antigos praticavam o jejum para estimular a inspiração... fabuloso este post meu caro Joaquim Simões.

Anónimo disse...

Joaquim Simões, ótimo texto!

NC disse...

Muito bom!