26 setembro 2007

O divino, os carnavais e coisas que tais 3

Sophia com Vinicius de Moraes

Começo por transcrever este belíssimo texto de Sophia de Mello Breyner Andresen, publicado, há uns anos, no nº 3 da revista Crítica.

Fernando Pessoa dizia: “Aconteceu-me um poema”. A minha maneira de escrever fundamental é muito próxima deste “acontecer”. O poema aparece feito, emerge, dado (ou como se fosse dado). Como um ditado que escuto e noto.
É possível que esta maneira esteja em parte ligada ao facto de, na minha infância, muito antes de eu saber ler, me terem ensinado a decorar poemas. Encontrei a poesia antes de saber que havia literatura. Pensava que os poemas não eram escritos por ninguém, que existiam em si mesmos, por si mesmos, que eram como que um elemento do natural, que estavam suspensos, imanentes. E que bastaria estar muito quieta, calada e atenta para os ouvir.
Desse encontro inicial ficou em mim a noção de que fazer versos é estar atento e de que o poeta é um escutador.
É difícil descrever o fazer de um poema. Há sempre uma parte que não consigo distinguir, uma parte que se passa na zona onde eu não vejo.
Sei que o poema aparece, emerge e é escutado num equilíbrio especial da atenção, numa especial da concentração. O meu esforço é para conseguir ouvir o “poema todo” e não apenas um fragmento. Para ouvir o “poema todo” são precisas duas coisas: que a atenção não se quebre ou atenue e que eu não intervenha. É preciso que eu deixe o poema dizer-se. Sei que quando o poema se quebra, como um fio no ar, o meu trabalho, a minha aplicação não conseguem continuá-lo.
Como, onde e por quem é feito esse poema que acontece, que aparece como já feito? A esse “como, onde e quem” os antigos chamavam Musa. É possível dar-lhe outros nomes e alguns lhe chamarão o subconsciente, um subconsciente acumulado, enrolado sobre si próprio como um filme que de repente, movido por qualquer estímulo, se projecta na consciência como num ecrã. Por mim, é-me difícil nomear aquilo que não distingo bem. É-me difícil, talvez impossível distinguir se o poema é feito por mim, em zonas sonâmbulas de mim, ou se é feito em mim por aquilo que em mim se inscreve. Mas sei que o nascer do poema só é possível a partir daquela forma de ser, estar e viver que me torna sensível - como a película de um filme - ao ser e ao aparecer das coisas. E a partir de uma obstinada paixão por esse ser e esse aparecer.
Deixar que o poema se diga por si, sem intervenção minha (ou sem intervenção que eu veja), como quem segue um ditado (que ora é mais nítido, ora mais confuso), é a minha maneira de escrever.
Assim algumas vezes o poema aparece desarrumado, desordenado, numa sucessão incoerente de versos e imagens. Então faço uma espécie de montagem em que geralmente mudo não os versos mas a sua ordem. Mas esta intervenção não é propriamente “inter-vir” pois só toco no poema depois de ele se ter dito até ao fim. Se toco a meio o poema nas minhas mãos desagrega-se. O poema “Crepúsculo dos Deuses” (Geografia) é um exemplo desta maneira de escrever. É uma montagem feito com um texto caótico que arrumei: ordenei os versos e acrescentei no final uma citação de um texto histórico sobre Juliano, o Apóstata.
Algumas vezes surge não um poema mas um desejo de escrever, um “estado de escrita”. Há uma aguda sensação de plasticidade e um vazio, como um palco antes de entrar a bailarina. E há uma espécie de jogo com o desconhecido, o “in-dito”, a possibilidade. O branco do papel torna-se hipnótico. Exemplo desta maneira de escrever, texto que diz esta maneira de escrever, é o poema de Coral:

“Que poema de entre todos os poemas
página em branco?...”

Outra ainda é a maneira que surgiu quando escrevi o “Cristo Cigano”: havia uma história, um tema, anterior ao poema. Sobre esse tema escrevi vários poemas soltos que depois organizei num só poema longo.
E por três vezes me aconteceu uma outra maneira de escrever: assim o poema “Fernando Pessoa” apareceu repentinamente depois de eu ter acabado de escrever uma conferência sobre Fernando Pessoa. E o poema “Maria Helena Vieira da Silva ou itinerário inelutável” emergiu de um artigo sobre a obra desta pintora. E enquanto escrevi este texto para a Crítica apareceu um poema que cito por ser a forma mais concreta de dar a resposta que me é pedida:

Aqui me sentei quieta
Com as mãos sobre os joelhos
Quieta muda secreta
Passiva como os espelhos
Musa ensina-me o canto
Imanente e latente
Eu quero ouvir devagar
O teu súbito falar
Que me foge de repente

Durante vários dias disse a mim própria: tenho de responder à Crítica. Sabia que ia escrever e sobre que tema ia escrever. Escrevi pouco a pouco, com muitas interrupções, metade escrito num caderno, metade num bloco, riscando e emendando para trás e para a frente, num artesanato muito laborioso, perdido em pausas e descontinuidades. E através das pausas o poema surgiu, passou através da prosa, apareceu na folha da direita do caderno que estava vazia.
Ninguém me tinha pedido um poema, eu própria não o tinha pedido a mim própria e não sabia que o ia escrever. Direi que o poema falou quando eu me calei e se escreveu quando parei de escrever quando parei de escrever. Ao tentar escrever um texto em prosa sobre a minha maneira de escrever “invoquei” essa maneira de escrever para “ver” e assim a poder descrever. Mas, quando “vi”, aquilo que me apareceu foi um poema.

Queria, em primeiro lugar, fazer notar aos mais distraídos que o poema que "aconteceu" a Sophia de Mello Breyner condensa tudo o que o texto diz. Em seguida, que o processo de criação estética por ela descrito é comum a todos os artistas fundamentais da nossa cultura (ocidental, em sentido lato, mas também nisso são seguidos pelos orientais). Note-se: todos! Paul Klee dizia mesmo que quando pintava era como se o seu braço estivesse a ser guiado por alguém de quem ele era apenas o veículo. A obra não é um produto surgido de uma deliberação, esta segue-se como aperfeiçoamento de uma intuição, seja lá o que isso signifique.

Por último, seria interessante ter em atenção o testemunho de diferentes cientistas (Niels Bohr, por exemplo) sobre o papel da intuição, do sonho, inclusivamente, na ciência. Einstein, a propósito de Edison, falava do "génio" como sendo "um por cento de inspiração e noventa e nove por cento de transpiração". Desta sabemos todos, da outra... bem, parece que eles sabiam alguma coisa.

No post seguinte desta série procurarei clarificar o que aqui deixo à consideração de quem me leia, bem como sistematizar algumas questões. Talvez lá para o final de sexta-feira, uma vez que entre amanhã e quinta me será muito difícil fazer mais do que comentar alguma "tourada" menor.

3 comentários:

Patrícia Grade disse...

Caro Joaquim... então e as ideias luminosas? O génio não se vê apenas naquilo que é mediático... o génio de cada um vê-se também na capacidade de resolver problemas.
As ideias luminosas geralmente não surgem com a transpiração... aparecem sorrateiras quando menos as esperamos, depois de muito termos suado as estopinhas, de termos forçado o cérebro à exaustão e nada termos conseguido. As ideias luminosas estão lá nesse lugar de que fala a Sophia, escondidas, à espreita, esperando a altura em que acalmemos e estajamos prontos para elas, para as escutar...

ablogando disse...

As ideias luminosas , continuando a utilizar a perspectiva de Descartes para explicar melhor o que quero dizer, são também intuições, chamemos-lhes de segundo nível. O conhecimento obtido por um encadeamento lógico-dedutivo é, ele próprio, uma progressão de intuição em intuição, isto é, algo só é entendido como conhecimento quando é re-conhecido como tal. Isto é particularmente claro, quando se trata do raciocínio matemático: eu sei que o raciocínio que diz que dois mais dois são quatro é válido em qualquer campo. E como é que eu sei que isto é necessariamente verdade? Por "iluminação", se quiser, por intuição.
Mas para se ter "iluminações" é necessário querer procurá-las, trabalhar, suar nesse sentido, aprender a "sintonizar o aparelho", estar com atenção. Umas vezes conseguimos, outras não, outras ainda distraímo-nos...
De repente damos uma palmada na testa e exclamamos: "Então e se eu pensar (fizer) assim?! Não era mesmo evidente que...?!".
Lembra-se do que dizia o Agostinho da Silva, de que não queria receber direitos de autor porque não sabia se as ideias eram, de facto, dele, se não seremos como uma espécie de receptores de rádio, captando as ideias que andam por aí? Descontando o lado brincalhão...
O problema da origem da inspiração e do conhecimento dela derivada é, aliás, um tema do jovem Platão, no Íon, uma das suas primeiras obras, ou seja, umas das suas primeiras preocupações.
Respondi com clareza? Se o não fiz, faz favor de reclamar.

alf disse...

Meu caro Joaquim, fiquei tão entusiasmado com este texto que fui logo divulgá-lo noutros lados e até me esqueci de por aqui um comentário.

Eu digo isto muitas vezes e admira-me como muita gente está convencida que as suas ideias resultam exclusivamente do seu pensamento consciente.

Há muito que tomei consciencia que as ideias resultam de um processamento inconsciente; percebi como este processamento funciona, algumas das suas carateristicas mais importantes e procuro tirar partido disso.

Já disse umas coisitas sobre isso no meu blogue, mas pouquito, eu não tenho o prestigio da Sophia, já basta outras coisas que tenho para dizer bem estranhas... não quero passar logo por maluco...