20 setembro 2007

O divino, os carnavais e coisas que tais 1


Uma troca de ideias em que me tenho vindo a envolver desde há algum tempo no Que Treta!, com o seu “proprietário”, Ludwig Krippahl, e os restantes “frequentadores”, leva-me a iniciar a abordagem dos temas em foco nessa discussão (amigável), através da publicação sucessiva de pequenos textos que, no seu conjunto, procurarão esclarecer, com a sistematização possível, alguns aspectos que, inevitavelmente, não cabem, se dispersam ou ficam por referir num comentário. Dito de outro modo, procurarei fazer aquilo que me parece ser um indispensável “acerto do dicionário” em que se têm cruzado as diferentes perspectivas e pontos de vista, de modo a evitar os equívocos e o consequente “diálogo de surdos” que, a meu ver, se gerou, prejudicando a compreensão do que está em causa. E isto, sem recorrer sempre e necessariamente a elaborações teóricas complexas, mas também, como hoje, a pequenos casos e histórias, omitindo, como é natural, os nomes de quem nelas esteve envolvido.

Anos atrás, um amigo emprestou-me um livro de poemas de um seu avô já falecido, com quem tivera uma relação muito funda e terna. Pediu-me para ter um enorme cuidado com ele, uma vez que não só fora ele próprio que lho oferecera como era também o único exemplar que restava.
O avô fora um dos grandes cientistas portugueses do século XX (omito aqui também aqui em que área desenvolveu a sua actividade) e Einstein enviara-lhe uma carta extremamente elogiosa, convidando-o a trabalhar com ele nos Estados Unidos. Tal nunca veio a acontecer, por motivo de obrigações diversas, mas a família guardou sempre, com orgulho compreensível, a carta de Einstein.
Os poemas que encontrei no livro eram de uma beleza extraordinária. Toda uma concepção do cosmos era ali dada, numa visão de grandeza e maravilha, a que se juntava uma emoção profundíssima assente na experiência vivencial de um intimismo que provinha da busca de si mesmo e da raiz, lugar e significado da vida no universo. Lendo-os, veio-me à memória uma frase não me lembro de quem (Isadora Duncan?) que dizia que nenhum compositor americano conseguira, como a poesia de Whitman, traduzir o espírito e a intensidade emocional da América miticamente pioneira.
Os poemas do avô do meu amigo tinham exactamente essa música dentro de si, impregnando-nos de uma dimensão cósmica e libertadora, de um longe que se encontrava mesmo ali, dentro de nós. Quem quisesse, podia encontrar neles a síntese do que, segundo o neto, constava e era a inspiração dos trabalhos teóricos que fez ao longo da sua vida. Neles estava, em estado puro, a intuição que, posteriormente, procurara testar e explicitar de uma forma matemática e discursiva. E a visão do universo presente nessa intuição exigia, de uma maneira apenas poeticamente exprimível, admitir a existência do divino.
Voltei a entregar o livro e, estranhando nunca ter ouvido falar daquele nome, perguntei ao meu amigo que explicação dava para que ele fosse tão pouco conhecido. Respondeu-me que o avô nunca se preocupara com isso e que a sua avó, mal ele morrera, decidira destruir todos os exemplares, por considerar que ser crente e, além disso, poeta, era, num cientista, indício de qualquer problema do foro psicológico, uma das lamentáveis “maluquices” indiciadoras de uma excentricidade socialmente embaraçosa e comprometedora. Apenas aquele escapara, porque nunca soubera da sua existência.
A avó do meu amigo ignorava que, tempos antes, Openheimmer afirmara publicamente, provocando incredulidade, espanto, engulhos ou escândalo de muitos bem-pensantes, que os melhores livros de física que lera haviam sido os Vedas, os quais, com os Upanishades, formam o conjunto dos livros sagrados do hinduísmo. E duvido que isso sequer lhe interessasse.
A mim, porém, que nunca liguei a morte do meu pai à consumação da minha autonomia, antes sempre lamentei as incompreensões mútuas que impediram a nossa maior aproximação e amizade, não me fez impressão a presença de um deus pessoal nesses poemas; aceitei-o, enquanto parte essencial de uma visão profunda do Todo, embora o meu conceito de qualquer divino não inclua a relação paternal. E passados demasiados anos, a herança poética e a visão do mundo do avô do meu amigo, de quem desconheço o presente paradeiro, continua desconhecida e os meus compatriotas, por isso mesmo, mais pobres.
Nota: o link está disponível aí ao lado, a partir de hoje.

1 comentário:

alf disse...

Muito interessante este post.

Se o Einstein lhe escreveu é porque ouviu falar dele, porque conhecia o trabalho dele. Donde?

O cientista pode ser um "operário" das técnicas científicas, que é o caso geral, ou pode ser alguém que busca entender um pouco mais o Universo. Neste último caso, é alguém que olha em todas as direcções.

Ser ateu sem saber porquê é apenas uma forma de ser crente. Um verdadeiro "não-crente" não tem certezas em matérias metafísicas, tem interrogações.

Estas interrogações surgem os olhos dos ateus como uma forma de crendice, mas é exactamente o contrário.