26 abril 2011

"Síria para idiotas"


Um problema de saúde de um familiar próximo tem-se reflectido na minha disponibilidade para vir até aqui. Espero retomar o ritmo dentro desta semana. Mas, até lá, deixo um novo texto que me foi enviado por Luís Dolhnikoff:

SÍRIA PARA IDIOTAS

1.

Mário Vargas Llosa, se não me engano, criou outrora, se não me engano novamente, a expressão “perfeito idiota latino-americano” para se referir, bem, a um perfeito idiota latino-americano. Existem sujeitos perfeitamente idiotas em outras paragens, obviamente. Mas o perfeito idiota alheio não é perfeitamente igual ao perfeito idiota local. Este tem algumas particularidades, por exemplo, ser “de esquerda”, o que por aqui significa, como regra, se posicionar de maneira perfeitamente idiota, a partir de argumentos idealmente idiotas, sobre tudo aquilo sobre o qual se posiciona. Se idiotas não pensam bem, idiotas perfeitos pensam muito mal. Já o perfeito idiota latino-americano pensa perfeitamente mal.

Faço essa pequena digressão inicial para retomar a discussão sobre as atuais revoltas árabes, depois das manifestações perfeitamente idiotas de muitos luminares da esquerda latino-americana sobre a ajuda militar da OTAN aos rebeldes líbios, e antes de discutir a possível ajuda aos rebeldes sírios.

O líder supremo dos idiotas latino-americanos, Fidel Castro, assim que começaram os protestos na Líbia, ou seja, antes de a ONU votar a ajuda aos rebeldes, prenunciou e anunciou que não havia revolta na Líbia, mas uma manobra de propaganda das potências ocidentais a fim de preparar a invasão do país pela OTAN. E não é que, pouco depois, forças da OTAN começaram a bombardear a Líbia? Logo, Fidel estava certo... Ao menos segundo outros perfeitos idiotas latino-americanos, como Hugo Cháves.

A realidade, obviamente, é diferente, apesar das aparências. Todo mundo, incluindo os países da Liga Árabe e da União Africana, pediu alguma ação militar para proteger os civis líbios das forças de Kadafi, a começar de uma zona de exclusão aérea.

Quando essa hipótese se tornou uma resolução da ONU, os fatos e as discussões haviam avançado no sentido de constatar que Kadafi não fazia uso apenas de aviões para bombardear os civis, mas também de artilharia de terra. Logo, a exclusão aérea, impedindo a aviação militar de Kadafi de decolar, não impediria os massacres, pois não impediria a artilharia de terra de atirar. E como a zona de exclusão aérea implicaria na utilização de aviação militar, fazia mais sentido aprovar uma resolução mais abrangente, que incluísse o bombardeio das forças de terra de Kadafi. Isso foi feito. Foi também quando recomeçou a gritaria dos perfeitos idiotas latino-americanos, incluindo muitos representantes do governo brasileiro, de que se queria promover a “troca de governo” etc., para não falar de argumentos ainda mais perfeitamente idiotas. Por exemplo: no Bahrein havia igualmente repressão, mas não havia bombardeio da OTAN. Corolário: já que o governo do Bahrein “podia” matar barenitas, o governo líbio também deveria poder matar líbios...

Eis que emerge o caso sírio. Os perfeitos idiotas latino-americanos estão no momento cheios de dúvidas perfeitamente idiotas, pois é difícil negar que o governo sírio esteja massacrando sua população. As cobranças por uma ação à maneira Líbia já começam a aparecer na imprensa mundial. Se se intervém para tentar proteger os rebeldes líbios, por que não os sírios? Um homem (e mesmo uma mulher) “de esquerda” deveria apoiar uma possível intervenção, ou deve considerá-la uma ação neocolonialista? Neste caso, os mortos sírios são todos falsos, artefatos da propaganda ocidental, como clama o governo sírio, ou pró-ocidentais que devem mesmo ser coibidos pelo governo sírio, glorioso inimigo de Israel e não menos glorioso aliado do “resistente” Irã, para não falar dos gloriosos grupos da “resistência” palestina, como o Hamas?

É tudo complicado demais até para mentes imperfeitamente idiotas.

Mas ouso tentar ajudar. Não porque eu não seja idiota, mas porque não consigo ser perfeito em nada, o que inclui minha possível ou provável idiotia.

2.

A Síria é governada por um partido-irmão do falecido partido do falecido líder iraquiano, Saddam Hussein. Trata-se do velho Baath. O Baath não tem quaisquer credenciais democráticas, mas isso não tiraria o sono de ninguém que seja espertamente “de esquerda”. Portanto, pretendo discutir aqui outro aspecto da ditadura síria.

Pois ela tem um caráter duplo. De um lado, se baseia numa estrutura de partido único terceiro-mundista, ou seja, numa oligarquia corrupta apoiada num imenso aparato de segurança e na opressão política. Mas por outro lado, ela sobrepõe a isso o fato de ser também sectária. Pois o aparato do partido único, assim como o de segurança, para não falar dos principais mecanismos econômicos, no caso sírio estão concentrados nas mãos de uma minoria religiosa, os alauítas, que não passam de uma seita xiita. Em suma, a Síria é um grande e poderoso país árabe sunita governado despoticamente pela minoria xiita.

A queda do governo de Bashar Assad, portanto, implicaria na queda da minoria alauíta-xiita, e na subida ao poder da maioria sunita. As consequências podem ser resumidas em duas palavras: guerra civil.

Mas não uma guerra civil “qualquer”, como a atual que empata a Líbia. Pois a Síria não é a Líbia.

A Síria, ao lado da Arábia Saudita, é o principal país árabe e sunita, em termos históricos, o país onde fica uma das mais importantes cidades sunitas e árabes depois da própria Meca e de Bagdá, Damasco. Por isso, a Síria sempre esteve no centro das preocupações dos fundamentalistas islâmicos. Como escrevi há pouco, em fevereiro de 1982, o exército sírio cercou com tanques a pequena cidade de Hama, selando-a, enquanto a aviação pulverizava tudo e todos que ali se encontravam, de casas a cães e bebês, passando por homens, mulheres e crianças. Foi o (anti)clímax de uma revolta islâmica liderada pela Irmandade Muçulmana síria, iniciada em 1976. Os números de mortos variam entre 10 mil e 30 mil, com algumas estimativas chegando a falar em 80 mil. O que não se discute é ter sido o evento de Hama o maior massacre pontual praticado por um governo árabe contra seu próprio povo na história recente.

Afinando porém a última afirmação, tratou-se de um massacre sunita praticado por um governo xiita. Isso apenas exemplifica o que aconteceria com a minoria xiita caso perdesse agora o poder: ser alvo dos mesmos métodos que usou nas últimas décadas contra a maioria sunita, com o tempero adicional de ser objeto de sua vingança.

Mas uma leitura atenta desse episódio também aponta para a força do fundamentalismo religioso na população e na política sírias. Pois essa grande revolta liderada pela Irmandade Muçulmana síria foi anterior mesmo à retrovolução iraniana contra o xá, em 1979, que para todos os efeitos inaugurou o renascimento contemporâneo do islã político.

Portanto, no caso sírio, o fundamentalismo islâmico não é um mero fantasma empunhado pelo governo tirânico com apoio ocidental para se manter no poder. Em primeiro lugar, o governo não tem nenhum apoio ocidental. E jamais teve. Em segundo lugar, esses fantasmas fundamentalistas sírios estão bem vivos. Apesar de todos os esforços do governo para espantá-los.

Para complicar um pouco mais, a Síria está em estado de guerra oficial com Israel desde 1967, por causa do contencioso fronteiriço das colinas de Golã.

Para complicar ainda mais, a Síria é o grande patrocinador, ao lado do Irã, do Hezbollah libanês. E como o aumento da instabilidade política na Síria redundará fatalmente no aumento (!) da instabilidade política no Líbano, encurtar-se-ia o caminho para o partido-milícia-grupo-terrorista xiita Hezbollah tomar o poder. Entre outros inúmeros motivos, para tentar ajudar os irmãos xiitas sírios na guerra civil que então se desenrolaria ali ao lado.

Pergunto então ao perfeitos idiotas latino-americanos de plantão o que se deve fazer: acusar o Ocidente de omissão, por permitir o massacre da oposição síria, ou acusar o Ocidente de pretender derrubar o governo antiocidental e anti-israelense sírio com a desculpa de proteger a oposição síria?

De qualquer forma, enquanto a oposição síria não for contida pela opressão do governo sírio, ela não deve recuar. Neste caso, a instabilidade síria irá aumentar de qualquer maneira. E, no limite, isso significará a queda do governo sírio.

Porém a queda do governo sírio significará a queda dos xiitas sírios e a ascensão dos sunitas. Sunitas que, no caso sírio, são historicamente mais fundamentalistas do que os xiitas...

Respondo então a parte das dúvidas dos perfeitos idiotas latino-americanos: podem ficar tranquilos, o Ocidente não intervirá na Síria. Nem o Ocidente nem ninguém. Pois se a situação síria é cada vez mais menos sustentável, nenhum cenário resultante é aceitável. A Síria é o próprio pesadelo da história de que falava Joyce: um do qual não se desperta, e que se vive à luz do dia. Um dia que ainda pode escurecer bastante, apesar de estação “primaveril” atualmente em curso no mundo árabe.

3 comentários:

Nausícaa, São Paulo, Brasil disse...

Enquanto isso, - e já desejando-lhe meus votos de boa recuperação ao vosso familiar - aqui, no Brasil:

Dilma diz que governo está “noturnamente” atento à inflação.

Fala que me leva a pensar que cada povo tem o "Lawrence" que merece. Isto é, já que vivemos tempos em que a opressão de um Estado chamado Vaticano não mais existe

http://www.historicaloutline.com/laminas_ficha.php?ID=2

ablogando disse...

Nausícaa:

"Noturnamente"? Porquê? Será que anda a dormir no trabalho?

Nausícaa, São Paulo, Brasil disse...

Caro Joaquim,

Ela disse que se preocupa com a inflação diuturnuamente e noturnamente. Eis o pesadelo!!

A certeza é que ela não dorme em serviço na pavimentação da via lulista em 2014 - ano da Copa!!