... é o título de um interessante artigo de Luís Dolhnikoff na revista on-line Sibila, cujo link me foi enviado pelo meu inestimável Nicolau Saião, antecedido das palavras seguintes:
I. O caso tunisiano
Não há nos países árabes, como regra, forças democráticas atuantes. A exceção (que como tal, confirma a regra) era o Líbano, e são agora a Tunísia e o Egito. Ou talvez não.
O Líbano, em todo caso, é uma democracia, embora manca e ferida de morte, com um grupo terrorista islâmico, o Hizbolah (Partido de Deus), mantendo uma milícia mais poderosa do que o exército e fazendo o Estado de refém.
A Tunísia era, até a semana passada, uma ditadura oligárquica (ou seja, não-militar nem particularmente ideológica). Essa ditadura foi derrubada por uma revolta popular não liderada por grupos islâmicos. Na verdade, não liderada por ninguém.
A centelha [da revolta tunisiana] foi um desentendimento em 17 de dezembro de 2010. Ela envolveu um jovem vendedor de verduras chamado Mohamed Bouazizi e uma policial [...] chamada Faida Hamdy. O que exatamente ocorreu entre os dois – quem esbofeteou ou cuspiu em quem, que insultos foram usados – é algo que já entrou para o reino do mito revolucionário. Pouco depois – este fato pelo menos não é contestado – Bouazizi colocou fogo no próprio corpo em frente ao moderno prédio do governo, onde os manifestantes [passaram a se aglomerar] em torno de retratos do mártir. Naquele dia, 17 de dezembro, doze membros da furiosa família Bouazizi reuniram-se em frente ao prédio do governo. Eles sacudiram o portão e exigiram que o governador saísse para vê-los. “A nossa família é capaz de aceitar tudo, menos a humilhação”, me disse Samia Bouazizi, a irmã do rapaz morto [...]. Ele viveria ainda mais 18 dias. Àquela altura, uma ditadura árabe com um pedigree de 53 anos estava tremendo convulsivamente. Dentro de mais dez dias, ela desmoronou, naquela que talvez tenha sido a primeira revolução da história que não teve um líder (Sid Bouzid, “O Facebook e a dignidade árabe”, Herald Tribune, http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/herald/2011/01/25/o-facebook-e-a-dignidade-arabe.jhtm).
Se isso tira da revolução tunisiana a sombra do radicalismo islâmico, também demonstra a inexistência de forças democráticas organizadas. A democracia como a entendemos sequer apareceu na revolta tunisiana como conceito ideológico. A palavra-chave foi “humilhação”:
Humilhação é a palavra importante nessa história. Foi o hogra, ou o desdém, da cleptocracia do ditador que acabaria unindo no ciberespaço [a] população. [...] Quando Zine el-Abidine Ben Ali, o ditador que acaba de ser deposto, falou à nação, a fúria [...] foi a resposta. Assim como o xá do Irã em 1978, ele havia “entendido” – tarde demais. Ele sentiu a dor do povo. O preço do pão seria reduzido. “Ele não entendeu nada”, me disse Hisham Ben Khamsa [...]. “Tudo o que aconteceu dizia respeito a dignidade, e não a pão”.
Como na maioria dos países árabes, a baixa expectativa de vida e a grande natalidade, derivada do patriarcalismo e do islã, que reduzem a mulher à função de “mãe de família”, mantém a pirâmide demográfica na Tunísia com um perfil antigo, ou seja, muito larga na base e muito estreita no ápice. Há jovens demais para uma economia muito pouco dinâmica, gerando desemprego, frustração e “humilhação”. Esta é tanto maior porque a Tunísia é um dos países árabes menos arcaicos. De um lado, o pequeno país mediterrâneo tem no turismo europeu uma de suas principais fontes de renda, o que faz a população ficar constantemente exposta ao modo de vida ocidental. De outro, a ditadura recém-deposta de Ben Ali praticava certo “despotismo esclarecido”. Enquanto os grupos islâmicos eram feroz e eficientemente perseguidos, praticamente anulando o perigo do radicalismo religioso, eram garantidas às mulheres, por força de leis, liberdades maiores do que a média árabe, ao mesmo tempo em que as profissões liberais eram estimuladas, assim como a educação superior. Se isso gerou o exemplo mais próximo de uma sociedade civil árabe (ao lado do Líbano), incluindo a existência de uma classe média significativa, não eliminou nem o desemprego nem o estado policial. A revolta tunisiana resultante, em todo caso, não foi feita em nome da democracia. Nem liderada por forças democratizantes organizadas.
II. Tirania versus democracia?
Suponha-se que a Itália, nos anos 1920, tivesse como governo não uma monarquia constitucional fraca, mas uma ditadura militar do tipo da de Pinochet. Suponha-se, então, que começassem manifestações populares contra essa ditadura. Suponha-se, por fim, que tais protestos fossem liderados por um partido chamado Partido Fascista, e particularmente por seu jovem líder, Benito Mussolini. Os protestos contra essa hipotética ditadura militar italiana deveriam ser apoiados partindo-se do princípio de que seriam “democráticos”, apesar de liderados por fascistas?
Se o que se quer é acabar com a tirania, como pode ser apoiado um movimento que, na prática, leva a outra tirania? Se o que se quer é acabar com a tirania, como pode ser apoiada uma nova tirania? Se o que se quer é acabar com a tirania, como se pode apoiar uma tirania?
Essas questões não são colocadas com tal clareza em relação aos países árabes, mas deveriam sê-lo. Porque a construção de uma democracia não é o objetivo de nenhuma organização política importante ou verdadeiramente influente em qualquer dos países árabes. Incluindo o Egito, que sofre agora o “efeito dominó” da revolta tunisiana, com a população saindo às ruas para pedir o fim da ditadura de Hosni Mubarak.
Costuma-se dizer que a inexistência de forças democráticas árabes minimamente organizadas é culpa das próprias ditaduras árabes, pois as teriam sufocado. Mas por que as forças democráticas não foram totalmente sufocadas em países não-islâmicos que sofreram ditaduras ainda mais longas? Meio século de stalinismo não abateu as forças democráticas na Europa oriental. Stálin e seus sátrapas eram ditadores menos eficientes do que Mubarak? E ainda que fosse o caso, isto apenas confirmaria o fato de não haver forças democráticas na oposição às ditaduras árabes, incluindo a egípcia. Mas se não há forças democráticas, em nome do que apoiar essas oposições?
Na verdade, não há forças democráticas nos países árabes hoje porque não havia ontem. E não havia porque os países árabes historicamente não desenvolveram o que se chama de sociedade civil. Até o início do século XX, durante meio milênio, os que seriam os atuais Estados árabes faziam parte de províncias do Império Otomano. E não havia sociedade civil ou democracia no império turco. Com a sua queda tardia em 1920, surgiram os atuais países árabes, criados por outros dois impérios, o francês e o britânico. Enquanto foram províncias ou protetorados desses impérios, também não houve o desenvolvimento ali de verdadeiras sociedades civis ou de forças democráticas significativas. Após a Segunda Guerra, com a queda dos impérios europeus, esses novos países árabes criados dos despojos do Império Otomano passaram a ser governados ou por reis ou por ditadores militares, como o coronel Nasser no Egito. Não há forças democráticas nos países árabes porque elas jamais existiram.
Ninguém ali clama pela construção de repúblicas laicas e de democracias representativas guiadas pelo voto universal, incluindo necessariamente as mulheres. Não é disso que se trata. Se trata, como nas atuais manifestações no Egito, diretamente inspiradas pelo caso tunisiano, de repudiar a ditadura, mas sem que isso implique na defesa formal de uma democracia. E é aqui que a maioria dos comentaristas ocidentais se perde. Pois partem de certo raciocínio automático, segundo o qual se massas populares saem às ruas para combater uma tirania, elas o fazem por quererem em seu lugar erguer uma democracia. Mas simplesmente não é verdade – e a queda da ditadura do xá no Irã em 1979, para ser substituída pela tirania dos aiatolás, deveria ser exemplo suficiente.
Então, quando se reconhece isso, parte-se para o cinismo puro e duro: de fato, essas massas árabes não querem a democracia como a conhecemos, nem têm lideranças democráticas fortes; de fato, as principais lideranças da oposição aos regimes árabes são islâmicas (como a Irmandade Muçulmana egípcia), ou seja, defendem a tirania teocrática; mas como se trata de lideranças agora secundadas pelo povo nas ruas, uma eventual futura tirania teocrática seria “democrática”. Cria-se, assim, a absurda figura da tirania democrática para negar o óbvio, que tais lutas e protestos, apesar de populares, não são necessariamente democráticos.
Para o pensamento político ocidental moderno, essa é uma dicotomia impossível. O que é popular é sinônimo de democrático. Mesmo porque, popular é relativo a povo, e democracia é o próprio “governo do povo”. No entanto, a história ensina e reensina que não existem tais absolutos. Hitler foi eleito.
Mas não o seria hoje. Pois há na atual constituição alemã uma cláusula que proíbe partidos de ideologia nazista de governar. O mesmo acontece na Turquia, onde uma cláusula pétrea impede a ascensão ao poder, pela via eleitoral, de partidos declaradamente islâmicos, pois se entende que um partido islâmico extinguiria a república, para criar um Estado teocrático. Trata-se, assim, de uma cláusula em defesa da república contra a vontade da maioria, quando esta pretende destruir a primeira. Não há aqui nenhum antidemocratismo, ou qualquer contradição. Porque a democracia não é sinônimo de ditadura da maioria. Porque a minoria tem de ter seus direitos garantidos (os direitos fundamentais são universais). E porque a república não pertence à maioria, mas à totalidade da cidadania (res publica, “a coisa do povo” [publica deriva de publicum, que deriva de poplicus, que deriva de populus, povo]).
Os protestos das massas árabes deveriam, idealmente, também ser apoiados a partir de uma cláusula democrática: pois derrubar uma tirania para abrir caminho à outra tirania, e ainda pior, pois ideológica (a teocracia islâmica), não faz sentido, nem tem nada de verdadeiramente democrático.
Mas como impor tal cláusula de fora? E como ela poderia ser respeitada, ainda que se quisesse, na ausência de forças políticas democráticas minimamente organizadas?
O dilema não tem solução. Além disso, aponta para tempos perigosos. Pois se as atuais ditaduras árabes começarem de fato a cair para serem substituídas por regimes islâmicos, grupos fundamentalistas como a Irmandade Muçulmana egípcia chegarão ao poder. As consequências seriam terríveis. Pois haveria uma corrida armamentista nuclear na região, com Estados poderosos, como o próprio Egito (o maior país árabe), reivindicando o direito, à semelhança do Irã, de desenvolver tecnologia nuclear. Grupos como o Hamas e o Hizbolah, que querem a destruição de Israel, e não qualquer tipo de composição com o Estado judeu, ficariam necessariamente mais fortes, e mais fortes as possibilidades de uma nova e devastadora guerra árabe-israelense. Por fim, atentados terroristas de massa, como o 11 de Setembro, gestado num Estado islâmico, o Afeganistão dos talebans, por um grupo terrorista, a Al Qaeda, protegido pelo regime, se tornariam muito mais prováveis.
Aqueles que “entendem” ou apóiam as revoltas das massas árabes contra suas tiranias em nome de uma pretensa natureza necessariamente “democrática” de tais revoltas, ignorando, minimizando ou relativizando as verdadeiras características políticas locais e, portanto, suas possíveis ou prováveis consequências, são como loucos aplaudindo a beleza das chamas que estão a queimar sua própria casa. Neste caso, a casa é o mundo, que não sairia incólume da possível emergência de uma série de novas ditaduras islâmicas.
III. Os fatos imediatos
As manifestações no Egito não têm, por enquanto, sido impregnadas por demandas islâmicas.
A poderosa confraria dos Irmãos Muçulmanos, considerada a principal força de oposição do país, não participou [até agora], com exceção de seus membros mais jovens (Cécile Hennion, “Um movimento de contestação ganha o Egito”, Le Monde, http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/lemonde/2011/01/27/um-movimento-de-contestacao-ganha-o-egito.jhtm).
Na verdade, o movimento não apresenta demandas ideológicas de qualquer tipo (incluindo a implementação de uma democracia moderna), limitando-se a pedir a queda do ditador Hosni Bubarak. Se as manifestações continuarem, ou seja, se não puderem ser reprimidas pelo governo, o mais provável é que aconteça então uma transição interna, como aliás aconteceu na Tunísia, onde a troca de governo foi parcial. Saiu o ditador, mas seus próprios ex-ministros integram agora o governo de transição, até as eleições marcadas para daqui a seis meses – eleições que, considerando a fraqueza dos grupos islâmicos locais, por mérito da ditadura recém-deposta, não devem levar a uma teocracia tunisiana. No caso egípcio, como o aparato de segurança, incluindo polícia, exército e serviço secreto, é muito poderoso, ele pode e provavelmente deve decidir que o melhor a fazer é “entregar o anel”, ou seja, Mubarak, o ditador de plantão, para “preservar os dedos”, o controle branco do Estado. Neste caso, a ameaça de uma “solução iraniana” para a atual revolta popular egípcia, com a ascensão da poderosa Irmandade Muçulmana ao poder, ficaria também afastada. Mas não há garantia de nada. A não ser que, para o bem ou para o mal, não emergirá no Egito uma democracia como a reconhecemos.
Ameaça nuclear
Veja uma animação que mostra todas as cerca de duas mil bombas nucleares lançadas na terra desde 1945 até 1998 por EUA, Rússia, Inglaterra, França, China, Paquistão e Índia: (clicar aqui para ver a página onde o texto está inserido bem como o vídeo, no final).
6 comentários:
Este artigo está muito bom. Não é preciso dizer mais.
Luís Reina
Vou linkar
Chapelada!
Excelente texto.
Luís Reina:
O texto é certeiro, porque não insere o essencial da situação no enquadramento conceptual, algo pedante, dos comentadores políticos europeus do costume.
David Levy:
Obrigado pelo link. Mas a chapelada irá, prioritariamente, para o Nicolau Saião, que me enviou o link e, evidentemente, para o autor.
E, já agora, atenção à revista Sibila, pouco divulgada entre nós.
Carmo da Rosa:
Abraço aí para Holanda.
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