ÁFRICA (GUINÉ), FEVEREIRO DE 70
e milhões de anos feitos para a gazela e a marabunta.
quando ainda não havia rastos de camião
nem o mar sepultava pensamentos e memórias
entre um olhar e um silêncio.
Serena era a madrugada, subitamente despertando
um vôo de coruja sobre os ombros de quem velava
- pastor e aguadeiro -
homem que na terra colocava a semente do tempo
ou do milho fremente para os sonhos e os minutos.
Algures, junto a uma parede devastada
onde a cal cristalizara a inocência e a perfídia
as abelhas eram a equivalência perfeita
do universo gerando a carne negra e branca
que dos livros guardara a misericórdia e o temor
de anos e anos a vir.
Há um grande e perpétuo rumor que faz pensar
em Orion e no Cruzeiro do Sul
mesmo quando o sol ainda risca a figura
incontusa dos sete pontos cardeais.
Qual o fulgor
que viaja entre oriente e ocidente
- os campos do mamute e da zebra primaveril -
mesmo quando a época das gramíneas refloresce
entre lua e penumbra?
Na terra
marco os dedos e os vestígios
de avós e bisavós
mas o contorno das palavras que escrevo e que despertam
as sombras do passado e do futuro
hei-de lembrá-las sempre
impolutas sobre o rio, sobre as casas, sobre os homens
que vi e que inventei.
in “Poemas perdidos”, com fotos de Almeida e Sousa
QUARTA ENTRADA
Avançavam cautelosamente à roda da vinha. Por precaução retirou e depois voltou a meter o carregador da automática. O tremor passara-lhe. Lembrou-se de quando brincava aos índios e cóbois na courela da Quinta Ferreira, antes do bosquezinho de castanheiros e um pouco para além da eira e da saibreira como um deserto em miniatura.
A rajada apanhou o companheiro da frente à altura dos rins e fê-lo rodopiar. Ao estender-se no chão, estranhamente calmo e fazendo pontaria como se estivesse na carreira de tiro, viu os olhos do outro muito abertos e fixos na cara suada.
Olhos esverdeados como uvas ainda não plenamente amadurecidas.
in “As estações da vinha”
LEVANTAMENTO DE RANCHO
O meu sargento desculpe mas ali não havia sonhos
Nem sequer daquele arroz que a prima maria fazia
Doce como os sonhos o meu sargento desculpe
Mas é tão estúpido tão escalabitano tão
A norte de bafatá ou mesmo
Castelo branco o meu sargento é um nabo
Sonhos de ovos em castelo misturados na farinha
O meu coronel desculpe mas tive de o abater
O gajo não entendia que os sonhos eram os outros
Eu não ia gastar na tropa recordações de noites várias
E já agora também lhe digo que na bolanha entre as árvores
Há um ar em silêncio extremamente melancólico
O meu capitão desculpe mas não chamei a amargura
De quando conheci a domingas uma vez encontrei-a
Já havia muitos meses que me lavava a roupa
Junto ao mercado do Pixiguiti chorava
Era sofrida como uma mulher
Doce e tão calada como um objecto partido
O meu capitão desculpe mas tive que o abater
É uma coisa que me chateia entrarem-me nos afectos
O que é que você sua besta sabia da ternura em comissão
De serviço o senhor que olhava de alto os taratas e os mancarras
O meu major desculpe mas era chegada a hora
Tantos anos depois ficaram todos em fila
A vingança é o que mais mora numa cabeça de soldado
Pensa-se nisso sempre quando se passa à peluda
De modo que foi assim fiz levantamento de memórias
E o melhor de tudo foi que já não me podiam tocar
Eram nabos frios como o esparguete o arroz sensaborão
Ficaram todos em fila pois então
Mesmo que em sonhos e agora estes não são
De ovos e farinha como almejava nesse tempo
Quando aguardava sem chegar uma encomenda familiar
Os olhos antigos tão fundos como o pego do rio Geba
E já agora que estamos com a mão na outra massa
Que é como quem diz com a pata na G3
O meu general vá à fava palavra de civil tão sem galões
O meu general é um nabo como na caserna se dizia.
in “O armário de Midas”
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