28 maio 2011

"Novas Oportunidades - o embuste"

(foto obtida aqui)

Recebido por e-mail:


Boa noite

Começo por informar que não sou, nunca fui e não serei eleitor votante no PSD. Situo-me num espectro político-ideológico completamente diverso, portanto a razão do meu contacto não tem qualquer motivação partidária. Simplesmente acho que este assunto é demasiado sério para ser tratado apenas como uma guerra de palavras entre dois partidos candidatos ao governo.

Fui formador de informática durante 17 anos, actividade que deixei de exercer a tempo inteiro em Agosto passado, quando ingressei na Administração Pública, mas nos últimos anos tive a infeliz oportunidade de conhecer a realidade da formação nas Novas Oportunidades. “Infeliz” porque pude verificar que se trata de um completo embuste. Em 17 anos de actividade e com mais de 12.000 horas de formação ministrada, a única vez que tive vontade de abandonar um curso foi nas Novas Oportunidades.

De facto, o modo como estes cursos estão estruturados é mau demais para ser verdade, e quem não conheceu a situação no terreno nem imagina a tragédia que aquilo é. E é este o motivo que me leva a entrar em contacto convosco: para dar o testemunho de quem teve a desdita de ministrar cursos das Novas Oportunidades.

1. O primeiro foi num centro de emprego na região de Lisboa. Pretendia-se certificar os formandos com qualificação equivalente ao 6º ano, num curso qualificado como B2. Coube-me ministrar 100 horas de informática, onde se deveria incluir módulos de Word, Excel, PowerPoint e Internet. As dificuldades começaram logo na utilização do próprio computador, porque a formação de base da maioria dos 10 formandos era tão rudimentar que vários deles nem o seu próprio nome de utilizador e respectiva “password” conseguiram fixar durante aquelas 100 horas.

Começando com o módulo de Word, a avaliação foi quase desastrosa por vários motivos: os conhecimentos de português eram quase nulos em vários dos formandos; houve quem não conseguisse escrever sequer um parágrafo completo durante aquele tempo; havia quem conseguisse dar dois erros ortográficos na mesma palavra.

No módulo de Excel, as coisas foram piores, de tal forma que ao fim de 3 sessões desisti de continuar com aquele módulo. Era impossível fazê-los perceber como calcular esta coisa simples: se fossem à bomba de gasolina, abastecessem 25 litros e cada litro custasse 1,2 €, quanto gastariam? Este era o cálculo mais simples que se poderia executar numa folha de cálculo, mas primeiro era preciso que percebessem o raciocínio do cálculo. Impossível.

Só no PowerPoint e na Internet é que se conseguiu que a generalidade dos formandos fizessem algum trabalho visível. Mesmo assim, o panorama geral era francamente desolador. Cheguei a falar com os professores de português e matemática para perceber se aquela tragédia era mesmo o que parecia, o que me foi confirmado. Na altura a minha filha estava no 5º ano, e tinha mais conhecimentos que qualquer um deles.

Os problemas não se ficavam por aqui. Em termos pessoais as coisas ainda eram mais difíceis. Um dos formandos era alcoólico e trabalhava zero. Chegava às aulas alcoolizado e era incapaz de acompanhar qualquer assunto. Outro tinha estado preso por tráfico de droga. Outro era um jovem de 19 anos que se gostava de exibir nas aulas a dizer que era gay. Outra, com 55 anos, andava sempre atrelada a este e era ele que lhe fazia os testes, porque ela deixava de trabalhar quando ele estava próximo, enquanto nos intervalos aproveitavam para dar umas passas. Outra ainda dizia ser doente e faltava constantemente, chegava tarde e saía cedo porque tinha de apanhar o autocarro, e saía constantemente da sala para tomar comprimidos porque estava cheia de dores.

Como as minhas aulas eram quase sempre nos últimos dois tempos, das 18 às 20 horas, eles queriam sair mais cedo não havendo intervalo. Mas como eram os últimos tempos, antes iam jantar ao refeitório, donde resultava que por vezes entravam na sala às 18:30 e às 19:30 queriam ir-se embora. No meio de tudo, o que verdadeiramente os preocupava era quando iriam receber o subsídio…

No final de tudo aquilo, como profissional que leva o seu trabalho a sério, fiz um relatório de avaliação onde indiquei que 3 dos formandos não iriam ser aprovados porque não tinham os conhecimentos mínimos para tal. Perante isto fui contactado pela pessoa coordenadora do curso, que me pediu por favor para os passar, pois se não o fizesse eles não poderiam receber o diploma. Acedi contrariado mas elaborei uma informação a justificar o meu desacordo e senti que estava a colaborar numa farsa.

Posteriormente voltei ao mesmo centro de formação para frequentar uma acção de actualização do CAP (Certificado de Aptidão Profissional), onde a formadora era uma colega que também tinha sido formadora do mesmo curso. Informou-me que o tal formando alcoólico estava agora a frequentar outro curso das Novas Oportunidades para obter o 9º ano! Eu nem queria acreditar. O homem é quase analfabeto!

2. Depois desta tragédia, fui convidado por uma empresa de formação para ministrar um curso do mesmo género fora de Lisboa, neste caso para um nível equivalente ao 9º ano. Foram-me atribuídos dois módulos, introdução à informática e PowerPoint, em dias alternados. Fui eu que abri o curso, e durante 7 horas no primeiro dia estive a falar de conceitos gerais de informática e de utilização do computador, de arrumação de pastas e ficheiros.

Qual foi a minha surpresa quando verifiquei que no segundo dia iria outro formador dar Excel, no terceiro dia iria outra formadora dar Word e no quatro dia voltaria eu, para continuar a falar de pastas e ficheiros! Pensei para mim próprio: onde eu vim cair! Como é possível que um curso seja estruturado desta forma? Que lógica de aprendizagem é esta? Quem estabelece este calendário? Como se admite que num dia se fale de pastas e ficheiros e no dia seguinte se esteja a falar de folha de cálculo sem ainda se ter explicado no módulo inicial como se criam pastas?

E de quem é a responsabilidade desta amálgama? Quem propõe este calendário e quem o aprova? Será a empresa formadora que propõe, ou serão os responsáveis que, sentados num gabinete e sem qualquer noção do que é uma acção de formação, determinam que um formador não pode dar mais do que 7 horas seguidas na mesma turma, e por isso tem de se misturar módulos diferentes com formadores diferentes sem qualquer lógica nem critério?

3. Num terceiro caso, o objectivo já era certificar o 12º ano. Uma das participantes era também uma jovem com 19 anos a quem perguntei porque não ia fazer o 12º ano numa escola. Resposta: porque aqui é mais fácil.

Apesar de tudo estes eram mais empenhados, embora deixassem alguns comentários em tom incomodado como “o quê, temos de fazer uma avaliação?”

Mas o programa do curso… oh céus! Como é possível, como, elaborar programas como aqueles? Consulta-se o conteúdo programático dos vários módulos das UFCD (unidades de formação de curta duração), e vemos estas pérolas:

· Informática – evolução 25 horas

· Arquitectura de computadores 50 horas

· Gestão e organização da informação 25 horas

· Sistemas operativos 50 horas

· Sistemas operativos multitarefas 50 horas

· Sistemas operativos utilitários complementares 25 horas

Daria vontade de rir se não fosse trágico. Como é possível elaborar 3 módulos de sistemas operativos, a par com um de gestão de ficheiros , ter formadores a falar das mesmas coisas durante 50 horas em módulos supostamente diferentes? Pergunto eu: alguém faz ideia do que está a fazer quando elabora estes módulos?

Vale a pena consultar estes conteúdos:

http://www.catalogo.anq.gov.pt/UFCD/Detalhe/736

http://www.catalogo.anq.gov.pt/UFCD/Detalhe/737

http://www.catalogo.anq.gov.pt/UFCD/Detalhe/738

Alguém que perceba como é que se diferencia uns dos outros, e que justificação existe para fazer disto módulos de 50 horas. Quem são os crânios, sentados atrás duma secretária e sem ter qualquer noção do que é a formação, que determinam que os módulos têm todos de ser em múltiplos de 25 horas? E pedagogicamente, qual é a lógica subjacente? Se as aulas são normalmente de 3 horas ou 3 horas e meia, como se faz um calendário com pés e cabeça de modo a completar 25 horas? Não têm sequer a noção básica de que as durações deviam ser em múltiplos de 3? Quem é que é pago para conceber esta miséria?

E o que são os sistemas operativos utilitários complementares? São 25 horas para ensinar a utilizar um antivírus e compactar de descompactar ficheiros com um programa do tipo WinZip. 25 horas para isto? Era como se criassem um módulo para ensinar a atarraxar lâmpadas: explicava-se numa hora e depois ficava-se 24 horas e roscar e desenroscar a lâmpada…

É isto que resulta das Novas Oportunidades: andar a “certificar” analfabetos que na sua maioria não estão minimamente interessados em aprender o que quer que seja, querem sim ter um diploma que ateste que têm o 9º ou o 12º ano, mas que quando forem para o mercado de trabalho irão mostrar a sua total ignorância. Como me podem “obrigar” a passar pessoas como tendo competências informáticas quando nem um parágrafo conseguem escrever? E o meu nome fica associado a uma vigarice destas a troco de quê? Por que carga de água é que eu hei-de dizer que aquelas pessoas têm competências que não têm?

De facto, seria bom que alguém fizesse uma auditoria (mas a sério, não a fingir) à seriedade das Novas Oportunidades. Pessoalmente considero, mais que um embuste, um roubo que se está a fazer aos portugueses apenas para mascarar estatísticas com pseudo-qualificações que, objectivamente, as pessoas não têm.

No fim da minha colaboração com este programa, para além da frustração perante a inutilidade daquilo que estive a fazer, sobreveio principalmente uma enorme indignação por verificar que estava a assistir a um desbaratar de recursos de forma totalmente inútil e da qual não advém qualquer mais-valia para o país.

Estou à disposição para prestar quaisquer esclarecimentos adicionais que considerem necessários. Acrescento que uma cópia deste e-mail vai ser enviada para todos os grupos parlamentares, uma vez que vi a notícia de que o assunto vai ser discutido no parlamento. Espero que o meu testemunho ajude a esclarecer os espíritos.

Com os melhores cumprimentos

Mário Feliciano

2 comentários:

Anabela disse...

Pois... seu caro Feliciano, é uma pena que a sua experiência tenha sido essa.
Já pensou em olhar para dentro e reflectir sobre as suas reais capacidades? De olhar para o outro, de compreender que as competências e oportunidades do outro não são necessariamente as mesmas que as minhas? Que da mesma forma que ele tem dificuldade em aprender em 100 de informática, poderá ter a mesma ou mais dificuldade em realizar outras tarefas e que isso não lhe dá o direito de achar que o outro é que não merece a oportunidade. Também eu digo que não sou, "nunca fui e não serei eleitor votante no PSD e que ituo-me num espectro político-ideológico completamente diverso, portanto a razão do meu contacto não tem qualquer motivação partidária". O meu testemunho é de quem TAMBÈM trabalhou durante 10 anos nesta área e ACREDITOU porque se há pessoas que de facto não corresponderam ao REFERENCIAL definido por ALGUEM, muitas outrasssssssss e muitas mesmo, tiveram oportunidade de evoluir, de aprender a trabalhar num computador, o que seria impensável há 10 anos atrás. Meu senhor, não sejamos vejamos as coisas só para um lado, cresçamos com as situações de vida e aprendamos com os outros, mesmo quando achamos que não temos nada a aprender nada com eles. Se era mau demais para ser verdade, não tivesse trabalhado na área, ninguém o amarrou, com toda a certeza. Portanto, teria a opção de não ser pago para isso (e nada mal pago) e fazer outra coisa qualquer onde se sentisse melhor e certamente não passasse a expressão de descrédito dos outros, só porque não sabem o que lhes quer ensinar, da forma como acha que deve ensinar.
Olhemos para nós próprios e façamos parte da SOLUÇÃO, não do PROBLEMA!

ablogando disse...

Cara Anabela:
Não posso responder por alguém que desconheço, visto que me limitei a reproduzir um email que me foi enviado por mailing list.
Se o publiquei, porém, foi porque o testemunho que ele nos dá é partilhado por muitos professores que conheço, alguns deles profissionais competentíssimos e, garanto-lhe, o mais atentos que se pode ser à experiência profissional e vivencial dos seus alunos, tanto os do ensino "normal" como o das NO.
Mais: também conheço diversas pessoas que frequentaram esse tipo de cursos e aquilo que me disseram foi que não haviam aprendido rigorosamente nada e que tudo aquilo não passava de uma farsa que se limitaram a aproveitar para obter certificadozinho que lhes dava as equivalências necessárias. Fora aqueles que, mal sabendo falar português, me exprimiram exactamente o mesmo.
Tendo tido o cuidado de verificar o conteúdo dos sites que, para o efeito, o ME criou, a minha opinião não só não mudou como se reforçou. Nada disto invalida ou diminui o esforço dos professores, cuja maioria terá, julgo, procurado diminuir a dimensão desta monstruosa fraude que são as NO. O que elas tiveram de mérito no plano do ensino teve origem nos professores que, apesar do ME e contra ele, conseguiram comunicar alguns conhecimentos válidos e úteis aos seus alunos, e não na gente pouco recomendável que a perpetrou.
Para terminar, devo dizer-lhe que a minha fisioterapeuta, rapariga dos seus vinte e poucos anos, votou contra o PS, melhor dizendo, contra José Sócrates, exactamente por causa das NO. Depois de ter visto aquilo que o seu próprio pai tinha "aprendido" nas "aulas" sentiu-se triplamente insultada: por ela, por ele e por todos os seus compatriotas.
Ainda há gente séria e digna neste país.
Joaquim Simões