05 outubro 2010

A República e a Maria da Fonte

Designa-se por Revolução da Maria da Fonte um conjunto de acontecimentos que teve lugar em Portugal entre Abril de 1846 e Junho de 1847, mas que, de facto, se estende bastante para além deste intervalo. De facto, a insurreição militar de 1 de Maio de 1851, dando origem à Regeneração, e a revolta da Janeirinha, em 1868, que termina com este período, mais não foram do que os últimos episódios decisivos das convulsões que atravessaram a sociedade portuguesa dos meados do século XIX.

Se nos cingirmos, porém, ao que se passou nos 15 meses que medeiam as duas Primaveras sucessivas deparamo-nos com um facto inédito, até e depois dessa altura, no nosso país e estranho à história da quase totalidade, se não mesmo à da totalidade dos restantes povos da Europa. Refiro-me à necessidade da rainha se ver forçada a pedir a ajuda de tropas estrangeiras para dominar uma rebelião popular em que, do Minho (onde começara) ao Algarve, todo o Portugal se envolvera. Uma rainha que pede auxílio aos exércitos da Quádrupla Aliança, nomeadamente aos de França, Espanha e Grã-Bretanha, para esmagar a revolta do seu próprio povo. A pretexto de este estar a ser manobrado por uma estranha aliança entre Setembristas (a esquerda, se assim se lhe podemos chamar) e Miguelistas, estes últimos pretendendo devolver a coroa a um tipo de monarquia que, tal como seu pai, D. Pedro IV, afirmava ser retrógrada. Quádrupla Aliança que interveio, assim, no sentido de que Portugal e a própria Espanha, onde começavam a soprar ventos semelhantes, se tornassem ingovernáveis - pela monarquia liberal e seus apoiantes e promotores.

Deixarei de lado a enumeração e a cronologia dos factos, por considerar que nos links inseridos no início deste texto ambas são suficientemente estabelecidas, bem como os nomes dos principais intervenientes. Julgo que, muito embora se trate somente de artigos incluídos na Wikipedia, não contêm incorrecções e, portanto, não falseiam o que os historiadores que se demoraram, com maior ou menor atenção, a analisar este episódio acharam por bem dizer sobre ele. Mas acerca disto mesmo voltarei mais tarde.

Basta-me lembrar o essencial: que na sequência das lutas civis que tiveram lugar na primeira metade novecentista entre partidários (com diferentes graus de radicalidade) do estabelecimento das monarquias constitucionais, de influência francesa, e os que pretendiam o regresso à fórmula que vigorava anteriormente a 1820, se desenrolava o último acto do braço-de-ferro de acesso ao poder. E que era Costa Cabral, ministro do constitucionalismo mais moderado, quem detinha o poder governamental. Por detrás de tudo isto, defrontavam-se ainda o fantasma de D. Pedro IV, materializado na rainha e nos seus apoiantes, e o ainda bem vivo D. Miguel, representantes, respectivamente de cada um dos tipos de regime.

Portugal era um país rural, mas de um ruralismo já diferente na sua relação com o país, mercê das alterações trazidas pela revolução de 1820. Alterações que não haviam trazido a reforma agrária que Almeida Garrett reclamava como urgente e decisiva, mas apenas a troca de proprietários das grandes extensões. Em vez da distribuição das terras confiscadas a ordens religiosas e alguma nobreza pelos camponeses, o que se verificou foi a compra dessas grandes propriedades pela burguesia endinheirada da capital. O camponês passou da condição de servo para a de assalariado de alguém cujo rosto poucas vezes tinha ocasião de ver ou que até desconhecia por completo, de alguém distante, com quem não possuía, portanto, qualquer ligação afectiva ou contacto. Mas que o obrigava, em nome das novas liberdades conquistadas, das quais ele não tinha grande noção e muito menos proveito que se visse, a pagar impostos cuja utilidade não lhe era clara nem dos quais retirava qualquer benefício que lhe fosse útil. Matemos, pois, esses Cabrais!

Rural e municipalista. E os municípios, cacicados ou não, têm cada vez menos poder decisório perante a necessidade de centralização que é vital para a imposição da nova ordem social e económica. Estão sobrecarregados de impostos para satisfazer os requisitos dos novos dirigentes do novo modelo de Estado. E os caciques, também eles, afinal, povo, rosnam, ameaçam os novos figurões, conspiram agora com os antigos senhores das terras que os formam. E nem sempre se limitam a sussurrar: “Matemos os Cabrais, que são falsos à nação!”. É que o coro dos munícipes faz-se ouvir por detrás deles, dá-lhes força. Os donos de Lisboa e do Porto julgam-se donos do país. Mas não são.

Rural e católico. Religioso ou supersticioso ou ambas as coisas, não interessa. Somente um ser suficientemente humano para interrogar a vida para além do cumere, do bubere, do bailare e do. O ser mais que meramente animal, que interroga a existência na sua relação com a morte nem que por um único dia na vida. O ser que, por isso mesmo, se abre à noção do que possa haver para além dela e, consequentemente, à outra, a do sagrado. O ser que determina o local onde se dá essa tentativa de ligar ou religar ao Princípio de todos os princípios. O ser que constrói a casa no local onde essa união se efectua e que, por isso, confere a esse local toda uma simbologia estreitamente ligada ao significado mais profundo da vida e da morte. O local onde, por ter sido sacralizado, deverão descansar os que morrem. O espaço da igreja. Onde, por razões duvidosas para os seus conhecimentos e por decreto de uma Lisboa distante, fria e opressora, cada vez mais ímpia e impiedosa, deixarão futuramente de poder ser enterrados. O cerne do significado último de tudo é, deste modo, abalado. A partir deste momento, nada mais há a perder! Matemos os Cabrais, que ardam para sempre nos infernos!

E é no lugar onde vida e morte surgem iniludivelmente ligados que tudo começa. Foi, como se sabe, talvez inevitavelmente, num funeral que tudo começou. Foi de lá que a fúria do povo rolou pelo país inteiro, uma fúria feita de varapaus, navalhas, machados, forquilhas, fuzis. E, por fim, soaram os canhões. Os dos constitucionalistas, de um lado. Do outro, em simultâneo, os dos setembristas e os dos miguelistas. E o povo revoltoso, o povo do “país real” de então, o que andava descalço e deu, por isso, ensejo a quem o desprezava de chamar à sua guerra a “guerra da Patuleia”, onde estava?

É precisamente aqui que se começa a supor um vislumbre de explicação de um outro facto, bastante estranho. Refiro-me ao facto de, face a um fenómeno social desta dimensão e com as consequências que se conhecem, os historiadores consagrados da nossa praça passarem, em geral, por ele mais ou menos apressadamente, que nem cão por vinha vindimada, como diria a expressão popular. Oliveira Marques, por exemplo, atribuiu-lhe um espaço reduzidíssimo na sua História para estudantes universitários em dois volumes, se tivermos em conta a dimensão da obra e a atenção que dá a outros acontecimentos, bem menos importantes e dramáticos. Porquê este silêncio ou, pelo menos, este desvio generalizado do olhar e da atenção? Aceitando como verdadeiro o que se afirma na cadeira de Teoria da História e o bom senso confirma, consubstanciado numa observação que ouvi a um dos professores que mais respeito me mereceu: “História? Histórias!”, avançarei eu agora com uma possível razão para esse silêncio.

Retomando o que estava a dizer: por onde andava a revolta do povo do país profundo, o povo português “esmagadoramente maioritário”? Como se distribuía no apoio aos movimentos políticos armados militarmente? Relembro que um dos motivos que justificou a decisão da Quádrupla Aliança de intervir contra os revoltosos foi que a mesma tendência se verificava já em Espanha. Qual era essa tendência anti-liberal estabelecida? A dos Setembristas? Bem, não eram estes, afinal, o liberalismo numa versão mais radical, mais “esquerdista”? Não eram eles, afinal, mais um movimento de intelectuais de pendor aguerrido no alcance e nos meios de fazer vingar as suas convicções? E não era precisamente contra essa perspectiva de ordenação da sua existência que o povo se erguera? Herdeira de Marx, que perspectivou a Patuleia como não mais do que um episódio da luta pré-revolucionária europeia que o proletariado, atendendo à dialéctica da História, estaria futuramente destinado a comandar, a esquerda e, em particular, a extrema-esquerda, tornaram-na bandeira da sua luta, em Portugal, como exemplo da luta pelas medidas “progressistas” e emancipadoras dos trabalhadores. O que é, a meu ver, uma conveniente descontextualização dos factos para o seu melhor aproveitamento ideológico.

O povo, à excepção provável de uns quantos elementos, não tem grandes ligações com esses intelectuais. Tem, isso sim, com os antigos senhores, pelos quais, passada a primeira ilusão de se haver visto livre de um fardo, voltou a suspirar 26 anos depois. Entenda-se: o nobre, senhor das terras, vê-as como parte do seu eu, como uma sua extensão. É uma visão orgânica, não uma visão comercial. Tem amor, mesmo que puramente possessivo, ao que é a marca do seu estatuto, a terra é como que o prolongamento do seu corpo. Não a encara com a frieza comercial do burguês, ou como objecto que confirma a ascensão social desse mesmo burguês, feito barão de extracção política recente - Foge, cão, que te fazem barão!/Para onde, se me fazem visconde?, ironizava Garrett. Nem aplica, impessoal e indiscriminadamente, os mesmos impostos, como faz o governo igualitário central, em nome da maior justiça social, iluminada pela racionalidade universal.

E, mesmo quando explora os seus servos, estes recorrem muitas vezes a uma arma ímpar. É que há sempre um, ou uma, ou uns, ou umas - há sempre quem tenha tido o privilégio de haver sido, na infância, companheiro de brincadeiras, fiel amigo e até confidente, quando não muito para além disso. E que acaba por, intercedendo em favor próprio ou dos restantes, amenizar ou anular os efeitos indesejáveis de uma decisão errada ou prepotente. A relação com o nobre tem um carácter, positivo e negativo, de afecto, é um contacto, no seu melhor como no seu pior, feito de humanidade. Está-se em contacto directo com o poder e é possível ou, ao menos, existe a esperança de poder chamá-lo à razão. Com Lisboa, não. A universalidade desprotegeu o camponês da arbitrariedade, da prepotência, da arrogância e da exploração do seu trabalho. E ainda ataca, com arrogância e verdadeiro desprezo, as suas tradições e convicções profundas.

O camponês, o povo, apoia os miguelistas, apoia os seus antigos senhores, aqueles com quem aprendeu, durante séculos, a conviver e relacionar-se. O povo recusa violentamente os novos senhores, os que o enganam com promessas de liberdade e justiça para os tornarem mais indefesos aos poderosos, através da universalidade da lei. O povo percebe que a ideia abstracta é uma forma de dominação concreta, que a ideia pode ser a cadeia que o aprisiona muito mais eficaz e perversamente do que qualquer nobre podia concebeu.

Que o povo apoiou em massa os miguelistas é um facto que, embora não o escondam, é, contudo ignorado pelos historiadores, inclusive os ligados à mais conhecida facção dos monárquicos portugueses, os quais, tal como os seus colegas republicanos, intercalam nos seus textos sobre o assunto expressões sintomáticas de um certo desdém pelo povo “atrasado”, como facilmente se pode verificar naqueles cuja leitura proponho. Estão, evidentemente, e possivelmente com maiores razões do que as minhas, no seu direito. Mas, além de ser também meu o direito de discordar, nesse aspecto, do que afirmam ou insinuam, julgo descortinar no tratamento que fazem do tema e nesses indícios de um menor apreço pelo grau de discernimento dessa revolução popular um factor fundamental, que procurei pôr a claro neste meu texto, escrito quase de rajada e, por consequência, insuficientemente cuidado quer literária quer argumentativamente.

É que, tal como dizia esse meu velho professor, “História? Histórias!”. E a perspectiva dos actuais historiadores, o estado de espírito individual e social de onde partem para construírem as suas Histórias, é o consequente à defesa desses tais ideais abstractos de liberdade e igualdade perante a lei com que se justificaram os poderes que decorreram da Revolução Francesa. Está nelas implícito um louvor à superior humanidade e humanismo que trouxe a queda da Bastilha consigo bem como à superioridade, no mesmo plano e no plano da competência de quem nos governa e que o povo pode escolher livremente. O resto são trevas.

Analisar seriamente a Maria da Fonte equivaleria à desmistificação da realidade sobre a democracia e a saúde social do nosso tempo republicano. Como se pôde ver, aliás, em tudo o que esteve ligado às comemorações oficiais desta semana.

(dedico este desabafo mal-amanhado à memória de Manuel Grangeio Crespo, que, muitos anos atrás, me alertou para alguns dos aspectos que hoje referi e aos desiludidos do 25 de Abril).

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