21 março 2011

No Dia Mundial da Poesia - 2


Segue-se a transcrição de um texto de Manuel Grangeio Crespo, hoje quase completamente esquecido e com a grande maioria da sua obra por publicar. Este texto foi publicado quatro anos antes do seu falecimento, ocorrido em Março de 1983, como prefácio a um livro de um outro autor.

A poesia (senhores) está a dar as últimas. O universo tornou-se inabitável. Deus já não se governa com palavras. Tudo o que havia a dizer já foi dito - e, no entanto, quando acontece na prática, continua sempre por dizer. Está no século de passar das palavras aos actos. Para quando a Desforra dos Poetas?

A desforra dos poetas é a Revolução. Uma revolução que institua uma Idade em que a Acção não seja menor que a Sabedoria, uma sociedade em que o poeta não tenha tempo para se queixar porque está distraído a «experimentar» com a realidade. A única revolução que pode calar um poeta.

Em vez disso, as revoluções que propõem aos poetas nunca são feitas em nome da Carne, que é a dimensão poética da realidade humana. Mudará a Economia e a Cultura - mas o quotidiano, que é onde a economia e a cultura (com minúsculas) assumem uma forma capaz de ser absorvida por seres humanos, permanece inalteravelmente descarnado. Próprio talvez para computadores, mas inconcebível para animais. A poesia é a voz da metade animal que nenhum ser pode perder sem deixar automaticamente de pertencer à Espécie humana.

Os poetas não se esqueceram ainda de que o Anjo é o limite do ser humano, não a sua negação. Negar a carne aos anjos é negar a cada homem a sua humanidade. Os poetas já não se satisfazem com fórmulas. Vêde-os: todas as suas lindas palavras se revelam impotentes para curar a sua doença…

E eles, os principais interessados, os próprios doentes - não haviam de sabê-lo? Nenhum poeta genuíno escreve por gosto (quando muito por menor desgosto, ou por trabalho como método para atingir o gosto).

Um poema é sempre um queixume. E o espírito só chora quando a carne sofre. Chorar alivia, mas não alimenta. O alimento procura-se no quotidiano. É nele que se curte a experiência (o namoro, o trabalho, o negócio) de cada dia. O poeta, por definição, é um esfomeado da experiência. E só os bem-nutridos têm fome de palavras.

Mas, isolado, como pode o poeta passar à acção? Mesmo que trabalhe por mil, como combater o veneno da solidão que, corroendo lentamente a carne, vai alienar todos os gestos? Um poeta quer-se com outro poeta. É preciso juntar os poetas que estão dispersos, cada um por seu partido, por seu sindicato. Juntos, seremos os operários da Revolução.

Daí nasce um segundo trabalho, o trabalho curativo, a literatura. Toda a poesia escrita (sob qualquer forma: palavras, imagens, notas) é os poetas a chamarem-se uns aos outros. Ouvidos atentos, camaradas: todos não somos demais.

1 comentário:

Luís Dolhnikoff disse...

Texto magnífico, e não enorme apenas porque sintético. Consegue dizer tudo sobre um tema ao mesmo tempo fugidio como geleia e dolorido de pegar como um cacto, e de uma forma ao mesmo tempo elevada e lúcida. Para arquivar, citar e reler de tempos em tempos.